terça-feira, 17 de setembro de 2013

RESENHA DO LIVRO: História das idéias pedagógicas no Brasil.

Dermeval Saviani Autores Associados: Campinas, 2007, 492p. O livro, que recebeu o prêmio Jabuti em 2008, na categoria Educação, constitui mais uma contribuição do professor Dermeval Saviani ao exame crítico do pensamento pedagógico brasileiro e é um fruto do amadurecimento intelectual do autor. Não se trata de simples exposição ordenada de resultados de pesquisa. É, na verdade, resultante de uma vida de intensa elaboração da teoria da educação sob perspectiva crítica, de pesquisas e reflexões geradoras de novos conhecimentos difundidos em aulas, grandes conferências, muitos livros e artigos, na trajetória desse educador. Oferecendo uma visão de conjunto das ideias pedagógicas na história da educação brasileira ao longo de cinco séculos, o texto discute suas implicações para a teoria e a prática educativas. As ideias pedagógicas diferem substancialmente da tradicional história do pensamento dos grandes pedagogos e, também, das educacionais, que se referem amplamente à educação. As ideias pedagógicas decorrem da análise do fenômeno educativo, na busca de explicá-lo, ou derivam de certa concepção de homem, mundo ou sociedade sob a qual é interpretado o fenômeno educativo. Segundo o autor, elas são "as ideias educacionais, não em si mesmas, mas na forma como se encarnam no movimento real da educação, orientando, mais do que isso, constituindo a própria substância da prática educativa" (p.6). Como exemplo, podem ser consideradas as ideias pedagógicas dos jesuítas no Brasil, especialmente no chamado Período Heroico; estas não se definem por simples derivação da concepção religiosa (católica) do mundo, sociedade e educação. Deram origem a práticas educativas que concretizaram o necessário ajuste entre as ideias educacionais e a realidade específica da colônia brasileira. São, portanto, as ideias pedagógicas ao longo da educação brasileira, o fulcro do estudo apresentado. O livro resultou de um acurado processo de pesquisa conduzido pelo autor, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, cujo propósito foi compreender a "evolução do pensamento pedagógico brasileiro a partir da identificação, classificação e periodização das principais concepções educacionais (p.1-2). A investigação tomou como materiais básicos documentos escritos – livros, artigos e textos oficiais –, trabalhando com fontes primárias, no caso, documentos nos quais se encontravam as ideias pedagógicas dos principais protagonistas da educação brasileira, e fontes secundárias, como documentação bibliográfica. Foi obtido assim um conjunto de informações de grande vulto que, no livro propriamente dito, se evidencia em cada um dos capítulos e é registrado em um total de 351 fontes diretamente referidas e utilizadas na redação do texto. Além das obras mais conhecidas de história da educação brasileira, estão presentes, no decorrer dos capítulos, numerosas referências aos estudos feitos no Brasil nos últimos 20 anos por pesquisadores do campo históricoeducativo e publicados até 2006. São livros, artigos e outros materiais, inclusive os divulgados como teses, dissertações e até monografias de cursos de pós-graduação. Esses estudos de corte analítico, que incidiram sobre temas ou momentos específicos da educação brasileira, foram trabalhados pelo autor, e, somados a muitas outras leituras, possibilitaram reflexões e interpretações substantivas e sínteses amplas, com densidade explicativa, relativas às ideias pedagógicas existentes em longos períodos da história da educação brasileira ou em algumas de suas fases. Não foi relegado, contudo, o objetivo de oferecer aos leitores parte significativa das ricas informações obtidas pela pesquisa, que se referem a cada um dos momentos da educação brasileira; são apresentados assim, cuidadosos detalhamentos, tais como biografias dos protagonistas e datas completas de eventos marcantes, para melhor esclarecer o leitor. Como outro resultado do trabalho de pesquisa, o autor construiu uma original periodização da evolução das ideias pedagógicas no Brasil. Buscou superar tanto as divisões no tempo, cuja base é a história político-administrativa, quanto as que se cingiram principalmente ao critério da determinação econômica, no esforço de compreender com maior rigor a história da educação brasileira. Assim, ao elaborar a periodização proposta, esclarece ter partido das principais concepções de educação, guiando-se pelo movimento real das ideias pedagógicas presentes no curso da história da educação. A Pedagogia Tradicional, nas vertentes religiosa e leiga, a Pedagogia Nova, a Pedagogia Tecnicista e a concepção pedagógica produtivista, estudadas em suas características nos trabalhos anteriores do autor, são as categorias que delimitam quatro grandes períodos, dentro dos quais se identificam as diferentes ideias pedagógicas. Cada período é subdividido em duas ou três fases, de acordo com o movimento dessas ideias no seu interior. O início e o fim de cada período foram determinados por eventos fundamentais. Assim, por exemplo, o 2º período, que vai de 1759 a 1932, e em que ocorre a "coexistência entre as vertentes religiosa e leiga da Pedagogia Tradicional", tem início com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, e o término marcado pela divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Para demonstrar que o movimento das ideias pedagógicas foi o efetivo "divisor de águas", nada mais elucidativo que a afirmação de que "o princípio da periodização tem por base a hegemonia" (p. 20). Termos como configuração, desenvolvimento, predominância, monopólio, equilíbrio, coexistência, crise e articulação, com referência às pedagogias, passam a ser utilizados nos títulos dos períodos e capítulos. Essas denominações indicam o modo pelo qual as ideias pedagógicas se apresentam em determinado momento histórico, sob a forma de uma pedagogia, ou concepção, que nasce, firma-se, predominando ou coexistindo ao lado de outra, entrando em crise e sendo substituída ou não, pois pode ser reconfigurada sob novas bases, num movimento constante. São analisadas também as chamadas ideias e correntes não hegemônicas e as pedagogias contra-hegemônicas, de "esquerda", que, em alguns períodos e fases da educação brasileira, buscaram influenciar e ainda influenciam, de algum modo, a ação educativa, especialmente em anos recentes. Na estrutura geral do livro, a história das ideias pedagógicas no Brasil é apresentada com uma divisão em quatro períodos, com suas respectivas fases, em um total de 14 capítulos. Na introdução, o professor-pesquisador, que coordena há algum tempo o, nacionalmente reconhecido, Grupo de Estudos e Pesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil" – Histedbr –, procura dar esclarecimentos sobre a perspectiva teórico-metodológica adotada, cujo princípio é o "caráter concreto do conhecimento histórico-educacional" (p.3), que, para sua efetivação, exige ser complementado por outros. São ainda examinadas questões teóricas do campo da historiografia, entre elas, a tentação relativista e a sedução pela micro-história. Na análise de cada período há um capítulo introdutório que indica sinteticamente as linhas básicas do momento histórico determinante das ideias pedagógicas correspondentes ao espaço de tempo analisado; a ele seguem-se os capítulos que correspondem às diferentes fases examinadas. Quanto ao conteúdo dos períodos e fases, dada a sua extensão e profundidade, somente uma leitura atenta de toda a obra poderá permitir a apreciação de sua qualidade e riqueza, inclusive da beleza e pertinência das ilustrações. Alguns aspectos serão destacados aqui, mais como um estímulo, um convite ao leitor. No 1º período (1549-1759), em que ocorre o monopólio da vertente religiosa da Pedagogia Tradicional, são de se mencionar tanto as explicações históricas, no cap 1, relativas ao atraso do desenvolvimento capitalista em Portugal, quanto, no cap. 3, a apresentação da Ratio Studiorum jesuítica em sua complexidade. No 2º período (1759-1932), ainda sob a Pedagogia Tradicional, mas incluindo a coexistência de suas vertentes religiosa e leiga, a propalada "desertificação" educacional após a expulsão dos jesuítas é confrontada no cap. 5, seja no que se refere à melhor compreensão dos novos propósitos político-educacionais em vista da "máquina mercante", seja no que diz respeito às reformas educacionais do despotismo esclarecido e às iniciativas como o Seminário de Olinda, no Brasil. No cap. 6, um alentado estudo das ideias pedagógicas e circunstâncias em que se disseminaram no Império e início do período republicano é feito mediante análise das propostas contidas na reforma, dos métodos de ensino utilizados para expandir a precária escolarização, bem como, da nova organização das escolas. As ideias pedagógicas republicanas são vistas em seus fundamentos positivistas e laicos. O 3º período (1932-1969) é aquele em que a Pedagogia Tradicional convive com a Pedagogia Nova e depois cede lugar a ela. Esta última predomina com ampla margem nesse intervalo de tempo. Já no final dos anos 60, a Pedagogia Tecnicista começa a articular-se. Esse movimento é descrito em quatro capítulos (7, 8, 10 e 14), com detalhamento de informações sobre as lutas político-educacionais então travadas e seus protagonistas e com o exame das questões pedagógicas que surgem. Pode ser considerado o mais abrangente. No 4º período (1969-2001), configurase a denominada concepção produtivista, mas também são examinadas as concepções pedagógicas, as contribuições e o papel histórico de Paulo Freire "referência de uma pedagogia progressista e de esquerda" (cap. 10) e, no cap. 12, os estudos crítico-reprodutivistas em seu papel de arma teórica nos anos 70 e no seu aporte para a compreensão dos limites da ação escolar. Também são mencionados explicitamente os trabalhos mais recentes e as lutas de seus principais representantes, Bourdieu, Baudelot e Establet, contra a invasão neoliberal, na defesa da educação pública. Para o autor, no entanto, a concepção pedagógica produtivista parece ser de fato a hegemonia das ideias e práticas pedagógicas, desde os 69 até os nossos dias, sendo que, nos impactantes anos 90, teria havido um surto eficientista em que a racionalidade econômica prevaleceu sobre a pedagógica. Aqui se faz apenas um único comentário crítico. Enquanto as análises dos três primeiros períodos, mais distantes do movimento atual, permitem uma compreensão aprofundada dos movimentos "orgânicos e conjunturais", o mesmo não parece ocorrer em relação ao 4º período, especialmente nos cap. 13 e 14. Julga-se ainda necessário, no processo de análise da história das ideias pedagógicas, aguardar um tanto mais a decantação pelo tempo das "impurezas" que impedem uma percepção mais nítida do real movimento de explicitação e prevalência de ideias. Quem sabe as ideias pedagógicas contidas nas pedagogias contra-hegemônicas possam ser mais reconhecidas, no seu alcance teórico e nas realizações práticas durante os anos 80 e posteriores, e nas esperanças depositadas no início do séc. XXI. Para isso, não só o tempo, mas também estudos, reflexões e pesquisas são imprescindíveis. De modo semelhante tornase uma exigência afinar a compreensão crítica quanto aos fundamentos e influências na prática pedagógica do chamado neoprodutivismo e suas variantes: neo-escalonovismo, neoconstrutivismo, neotecnicismo (cap.14). Cabe destacar ainda, no livro, a reiterada afirmativa do autor de que sua imensa tarefa de pesquisa e síntese das ideias pedagógicas no Brasil seria vã, caso os conhecimentos obtidos resultassem apenas em um relatório técnico, para especialistas, e não chegassem até as salas de aula pelos professores e diretores, e não conseguissem integrar programas escolares. Sendo assim, a obra persegue o propósito de trazer mais coerência e consistência à ação educativa, como, no dizer do autor, "um primeiro esforço no sentido de pôr ao alcance dos professores um recurso que lhes permita abordar a educação brasileira em seu conjunto, desde as origens até nossos dias" (p.18). Pelas razões apontadas e considerando de plena justiça o prêmio recebido pelo autor, é que se pode recomendar aos educadores a leitura de mais este livro do dr. Demerval Saviani, professor e orientador de grande número de professores e pesquisadores brasileiros que estão hoje produzindo teórica e praticamente a educação no Brasil.

RESENHA: COMPREENDER E TRANSFORMAR O ENSINO

Sem compreender o que se faz, a prática pedagógica é uma reprodução de hábitos e pressupostos dados, ou respostas que os professores dão a demandas ou ordens externas. Conhecer a realidade herdada, discutir os pressupostos de qualquer proposta e suas possíveis conseqüências é uma condição da prática docente ética e profissionalmente responsável. As teorias e o pensamento educativo se apresentam, em muitos casos, como legitimadores de realidades e projetos com uma autoridade técnica que oculta as dimensões éticas, sociais, pedagógicas e profissionais dos fatos e usos no sistema educativo. Em Compreender e Transformar o Ensino, os autores analisam os problemas e as práticas que foram e são essenciais para dar conteúdo e sentido à realidade do ensino. Os professores como planejadores Embora o professor não seja o único agente que elabora o currículo escolar, possui um papel importante ao traduzir para a prática qualquer diretriz ou seleção prévia dos conteúdos. Desta forma, além do professor auxiliar na elaboração dos currículos escolares, sua participação vai além, desempenhando atividades práticas como a elaboração de roteiros de conteúdos, preparo de atividades ou tarefas, previsão de materiais que serão utilizados, confecção ou seleção dos mesmos, acomodação do mobiliário em sala de aula, etc. A prática de planejamento de professores pode ser vista sob uma perspectiva gerencial, isto é, como um passo que faz parte do processo de desenvolvimento do currículo. Também pode ser encarada sob uma ótica fenomenológica, onde a programação dos professores são as operações que estes realizam quando planejam. Já sob uma perspectiva técnico-cientificista, os professores, ao programar ou planejar, desejam alcançar racionalidade em suas decisões. A perspectiva psicológica, por sua vez, entende que os processos de planejamento incluem as atividades mentais que os professores desenvolvem ao realizar seus projetos, assim como quando aplicam os planos à realidade, visto que planejar implica tomar decisões, considerar alternativas e resolver problemas. E um enfoque coerente com a tradição acadêmica determina que o professor, como planejador, deve seguir a estrutura interna do conhecimento que leciona em diferentes áreas ou disciplinas. Finalmente, a perspectiva prática entende o plano curricular como função básica dos professores, que reflete em seu trabalho a sua profissionalização. O enfoque prático concede valor à habilidade dos professores em buscar a forma de aprendizagem mais adequada aos interesses dos alunos, partindo da premissa de que aprender é conseqüência de um envolvimento pessoal e de um processo de reflexão que não pode ser previsto desde o começo. Porém, ao lado dos pontos positivos há também fatores negativos, e a maior dificuldade desse enfoque reside no fato de se apoiar demasiadamente nas possibilidades do professor, mas não propor soluções, deixando o educador totalmente à mercê dos acontecimentos externos. Configuração de um modelo prático para os professores Num enfoque prático o professor não atua seguindo modelos formais ou científicos, nem segue à risca modelos de ensino ou de aprendizagem. Isso não impede, porém, que o professor possa aproveitar idéias e teorias científicas, mas quando fizer isso deverá sempre dar seu toque pessoal às situações que surgirem. Em seu trabalho em sala de aula, o primeiro desafio do professor consiste em manter a cooperação dos estudantes nas atividades propostas. Conseguindo que seu trabalho flua e que dê bons resultados. Sendo assim, o professor deve-se levar em conta os desafios mais elementares que o ensino apresenta, e não subestimá-los. Conclui-se que o sucesso dos planos curriculares devem muito à habilidade prática do professor em controlar e sanar situações deficitárias em seu ambiente de trabalho. Também para um bom sucesso na implantação dos planos curriculares e um melhor esclarecimento daquilo que se pretende, é importantíssimo que os professores os elaborem com base em esquemas mentais, geralmente não explicitados, e que por sua vez baseiam-se em esboços escritos. E o mais importante de qualquer programação escrita é que ela seja um reflexo real dos esquemas mentais, não seguindo pura e simplesmente exigências burocráticas da escola. O plano curricular significa para os professores a oportunidade de repensar a prática, representando-a antes de concretizá-la. O desenvolvimento dessas atividades deve seguir um processo cíclico: pensar antes de decidir, observar ou registrar o que acontece enquanto se realiza o processo e aproveitar os resultados e anotações tomadas em relação ao processo seguido para se ter em mente como melhor proceder em uma nova oportunidade. Quando um professor planeja encontra-se perante o fato de que é preciso ensinar os seus alunos, isto é, desenvolver um currículo. Para tanto pode-se partir de três considerações: a) Condições da situação na qual se realiza: A prática institucionalizada é uma realidade, podem até ser propostas algumas reformas, mas nunca será algo totalmente novo. Porém, pelo menos em parte, o caráter de determinada situação poderá ser moldado pelo professor. Não ocorrem situações totalmente abertas, mas tampouco de todo fechadas; b) O currículo dado aos professores e aos materiais: É preciso que os professores ponham em prática ações concretas para desenvolver o currículo a eles incumbido. Assim, com o auxílio de guias curriculares, livros-textos, etc, precisam, através de processos ensino-aprendizagem, efetivamente cumprir o estipulado nos currículos escolares; c) Um grupo de alunos por possibilidades e necessidades concretas: Toda a aprendizagem surge da interação do novo com o existente, por isso é preciso levar em conta a vida pregressa e as necessidades individuais dos alunos. Ao contrário do que expunham os planos altamente estruturados, que buscavam um modelo universal válido para todos os educandos, os professores devem entender o ensino como um processo singular. Por outro lado, as soluções que o professor pode dar em relação aos problemas com os quais se depara podem ser: a) Os dilemas ou possibilidades de planejamento: O professor deve decidir se faz um plano para toda sua disciplina, para uma unidade concreta, para um conteúdo delimitado, etc, defronte a um rol de possibilidades bastante extenso; b) Previsão global de metas: O professor deve sempre ficar atento quanto às metas que se propôs alcançar, e ter em mente uma certa visão do que servirá para os alunos os trabalhos que realiza com eles; c) Experiência prévia: Ao mesmo tempo que a experiência prévia dos professores mostra-se bastante útil na condução de situações delicadas surgidas no processo ensino-aprendizagem, revela seu lado negativo ao acomodar o professor, inibindo-o de buscar novas soluções para seus problemas; d) Materiais disponíveis: Os recursos que o professor dispõe, não apenas os livros-texto, e sua capacidade para aproveitar e buscar materiais fora das salas de aula, auxiliam-no a escolher as atividades que melhor se enquadrarem ao que pretende. A própria experiência que o educador possui o fará buscar materiais apropriados, mais variados e atrativos para os alunos. A utilidade do plano para os professores A utilidade fundamental do plano curricular desenvolvido pelos professores está nas seguintes razões: a) Facilita o enriquecimento profissional, por ser uma atividade que leva o professor a refletir sobre a prática de ensino; b) O plano determina as linhas gerais das atividades que serão desenvolvidas, o que serve como referencial a ser seguido pelos professores; c) O plano aproxima os educadores de seus educandos, pois alia o pensamento e a teoria com a ação de educar; d) Os planos, sendo referenciais de ações, dão mais segurança ao professor no desenvolvimento de suas atividades; e) Os planos prévios forçam o professor a buscar materiais de trabalho para suas aulas, deixando de basear-se pura e simplesmente no livro-texto; f) Os planos do professor, uma vez conhecidos e discutidos com os alunos, mostram-se uma forma de criar laços de comprometimento entre educador e educando; g) Os planos dos professores, somados aos registros efetuados em um diário de classe, mostrando a forma como foi desenvolvida a atividade, revelam-se uma boa forma de compartilhar informações com colegas do magistério; h) Se, depois de experimentados, os planos mostrarem-se positivos, serão um bom recurso para avaliar processos educativos. Dimensões de um modelo prático Quanto às dimensões de um modelo de planos, não há uma fórmula mágica a se apresentar: o seu sucesso dependerá da situação particular de cada caso. Porém pode-se dar algumas sugestões: a) Metas e objetivos: É necessário que o professor entenda perfeitamente quais são suas metas e objetivos antes de começar a elaborar o seu plano. Convém que reflita sobre suas finalidades e compare as conseqüências do que faz com os objetivos propostos; b) Decisão de conteúdos: Planejar um currículo exige que o professor domine a matéria que irá transmitir aos seus alunos, que conheça os seus conteúdos a fundo para poder escolher os que mais interessarem em determinado momento; c) Organização do conteúdo: Na organização dos conteúdos deve-se abordar dois tipos de opções: os pontos de referência em torno dos quais agrupar o conteúdo (temas, unidades didáticas, lições) e a seqüência ou ordem dos mesmos; d) Tarefas ou oportunidades de aprendizagem: Enquanto os objetivos e conteúdos estiverem somente no papel, mostram-se inúteis, sua utilidade aparecerá quando forem efetivamente praticados. É necessário uma interação entre o estudante com o conteúdo para que se processe de fato a aprendizagem. Assim, os professores, ao analisar e selecionar as atividades, devem levar em conta a coerência com os fins gerais da educação, a capacidade para extrair possibilidades educativas genuínas de uma disciplina, ver o grau de motivação, globalidade e estruturação da atividade, etc; e) Apresentação do conteúdo e dos materiais: Grande parte dos conteúdos do currículo necessitam de um suporte sobre o qual os alunos irão desenvolver suas atividades. Esses suportes poderão ser gráficos, imagens fixas, filmes, etc. Grande importância deve-se dar ao livro-texto, porque em torno de seu uso será organizada boa parte das atividades dos alunos; f) Produção exigida ao aluno: Para um professor poder avaliar os seus alunos, precisa que estes desenvolvam uma série de atividades, tais como resumos de textos, provas orais e verbais, etc. Porém quanto maior for o número de meios empregados, maior será a probabilidade de uma boa avaliação; g) A consideração das diferenças individuais: A aprendizagem é um processo que varia de aluno para aluno, mas ante a esta verdade buscar métodos específicos para cada aluno ou adaptar materiais para as necessidades de alunos com carências especiais está fora do alcance da maioria das escolas e professores da atualidade. Porém em relação às diferenças individuais, os professores podem optar por uma organização flexível de seu trabalho, que permita a expressão das pecularidades e uma atenção diversificada aos estudantes dentro da sala de aula; h) A participação e o compromisso dos alunos: Uma preocupação básica dos professores é que o ensino flua com naturalidade, e para tanto é necessário um certo compromisso e comprometimento do aluno com as tarefas estipuladas. Para que isso aconteça o conteúdo e as atividades devem adequar-se às possibilidades dos alunos e representar desafios estimulantes. Desta forma a educação deve ser atrativa e produto de uma colaboração entre professores e alunos, união de fatores que só tende a trazer resultados positivos; i) Adequação ao cenário: A atividade de ensino realiza-se em um determinado espaço físico, e cabe aos professores ordenar o mobiliário e os recursos didáticos existentes, distribuindo-os na melhor forma possível na sala de aula; j) Avaliação: A avaliação é uma exigência formal e que causa muito impacto em todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem. Assim, cabe ao professor fazer com que seja o menos traumática possível, através da escolha de melhores técnicas, do momento certo de realizá-las, definindo o real objetivo das mesmas, etc. Tags:avaliação, compreender e transformar o ensino, compreender-e-transformar-o-ensino-resenha-sacristn, currículo escolar, elaboração de roteiros, Gómez, modelo prático para professor, perspectiva psicológica, prática de planejamento, prática pedagógica, previsão global de metas, realidade herdada, resenha-compreender-e-transformar-o-ensino-sacristan, Sacristán, sacristan-compreender-e-transformar-o-ensino-resenha, sistema educativo

RESENHA: A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológico e Políticos

Por: Fábbio Xavier Teólogo e Graduando em História É impossível não ler Mario Sergio Cortella, sem passar pela temática da escola Nova, ao escrever o seu livro “A Escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos”, Cortella de forma prática e muito clara sempre embasada nos estudos e ensinamentos do grande pedagogo e educador Paulo Freire, coloca a Escola como um grande centro de pesquisa. Mario Sergio Cortella traz uma análise concernente ao conhecimento que é produzido no interior da escola, seu livro é composto por cinco partes muito importantes para a compreensão da sua obra no todo, no primeiro capítulo traz como tema: Humanidade, cultura e conhecimento; no segundo: Conhecimento e verdade: a matriz da noção de descoberta; no terceiro: A escola e a construção do Conhecimento; no quarto: Conhecimento escolar: epistemologia e política e por fim ele conclui a sua obra com um quinto capítulo: Conhecimento, ética e ecologia. Ao iniciar a análise desta obra, achei por bem iniciar o texto chamando para este diálogo o grande escritor Dermeval Saviane que na sua obra “Escola e Democracia” nos trás um grande discurso sobre como deveria ser uma escola democrática e autônoma, conforme podemos verificar nas suas palavras. “A pedagogia nova começa, pois, por efetuar a crítica da pedagogia tradicional, esboçando uma nova maneira de interpretar a educação e ensaiando implantá-la, primeiro através de experiências restritas; depois, advogando sua generalização no âmbito dos sistemas escolares.” (SAVIANI, 2002, p. 7) Perceba que Saviani coloca que a pedagogia nova tem esta característica de interpretar a educação através da experiência pessoal e principalmente dentro do ambiente escolar. É perceber que o professor não é somente um mero transmissor do conhecimento, mas antes de tudo, ele é o mediador, será aquele que mostrará ao seu publico alvo como este conhecimento é construído, é poder trabalhar este ser humano que está em seu interior com cultura e conhecimento. O autor coloca que existe uma luta constante através do tempo para conceituar o que significa ser humano, nos arremetendo aos conceitos filosóficos mais clássicos, como os de Aristóteles, Platão e ate os contemporâneos, como é o caso do escrito Fernando Pessoa, todos com seus conceitos. Cortella deixa bem claro que todo profissional que trabalha com a educação, antes de tudo, ele trabalho com uma ferramenta chamada conhecimento, que será o objeto principal de nossas atividades. Portanto, não podemos olhar para este objeto apenas com um olhar cientifico. E como diferenciar esta visão? Observando o conhecimento que é produzido no dia-a-dia no interior da escola. Observe o que nos diz Cortella “Por isso, e para que possamos pensar o tema do conhecimento e, a partir dele, produzir uma reflexão que nos ofereça mais fundamentos para nossas práticas pedagógicas” (2009, p. 23), é pela prática do conhecimento que proporcionará aos profissionais da educação seus valores. Cortella tem o cuidado de conceituar de forma muito clara o que é, de onde vem, e como chegar ao conhecimento, que é uma ferramenta de suma importância para o educador, e traça um acompanhamento histórico e filosófico para tal finalidade, passando por filósofos importantes como Sócrates e Platão. Quando Cortella coloca que a Escola é o local do conhecimento, subentende que ele está querendo nos deixar bem claro que a experiência vivida por cada educador acontece no campo prática vivenciada, no seu livro Pedagogia da autonomia de Paulo Freire coloca que não pode existir docente sem discente, ou seja, todo professor sempre será um eterno aluno. Ao analisar o conhecimento como algo acabado, pronto e massificado é um perigo muito grande para o profissional da educação, é justamente dentro deste contexto que entra a proposta da escola nova, de colocar o professor não apenas como um mero transmissor do conhecimento para os seus alunos, mas como um mediador que não apenas leve o conhecimento, mas que indique quais os caminhos para se alcançar este conhecimento. Podemos verificar este posicionamento nas palavras de Cortella (2009, p. 95): Não há conhecimento que possa ser apreendido e recriado se não se mexer, inicialmente, nas preocupações que as pessoas detêm; é um contra-senso supor que se possa ensinar crianças e jovens, principalmente, sem partir das preocupações que eles têm, pois, do contrário, só se conseguirá que decorem (constrangidos e sem interesse) os conhecimentos que deveriam ser apropriados (tornados próprios). É importante observar que o espaço da escola é um local de aprendizagem em constantes transformações sociais, e o professor tem que ter os olhos abertos sem cercas para observar este ambiente que se chama escola. Lembrando que as idéias sociológicas provocaram grandes alterações nas concepções pedagógicas, principalmente do ponto de vista epistemológico, que rejeitam os pressupostos idealistas, em contrapartida vemos os materialistas tradicionais contrapõem à dialética. (ARANHA, 2006). Para finalizar a sua obra, Cortella traça um paralelo muito interessante acerca da ética dentro do processo da construção do conhecimento, quando falamos em ética logo nos vem à mente um sistema de regras do que podemos e não podemos fazer sobre as nossas escolhas. É importante que a busca pelo conhecimento compartilhado venha ser trabalhado de forma ética, para que o profissional forme alunos integro comprometido com a pesquisa de forma verdadeiro sem máscaras e sem fingimentos. Portanto, esta obra de Mario Sergio Cortella e sua tese do conhecimento é uma contribuição importantíssima no campo social, filosófico, político, cultural e intelectual tomando a escola como lugar de clímax, transporte e um importante veículo para disseminação de novo conceito de fazer educação. E, finalizo repetindo as palavras de Dermeval Saviani, eu acredito no poder da escola e em sua função de equalização social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação e da Pedagogia: Geral e Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006. CORTELLA, Mario Sergio. A Escola e o Conhecimento. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2009. ROCHA, Ruth. Minidicionário. São Paulo: Scipione, 1996. SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. 35. ed. Campinas: Autores Associados, 2002.

TEIXEIRA, Anísio. A escola pública universal e gratuita. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v.26, n.64, out./dez. 1956. p.3-27.

A ESCOLA PÚBLICA, UNIVERSAL E GRATUITA * ANÍSIO TEIXEIRA Diretor do I.N.E.P. No mês de maio último, reuniram-se em Lima, convocados pela Organização dos Estados Americanos (a antiga União Pan-Americana), os representantes dos Governos nacionais do nosso continente. Êstes representantes não eram ministros da Fazenda, nem ministros do Exterior. Eram ministros da Educação. O tema da reunião não era a política exterior nem a política econômica ou financeira, e sim a política educacional. E em política educacional, não se debateram os problemas do ensino secundário, nem do ensino superior; mas, do ensino primário. A despeito do caráter de que se revestem quase sempre essas reuniões internacionais, do seu ar tantas vêzes irremediàvelmente convencional, os que lá estiveram sentiram, em mais de um momento, que algo de histórico se processava na evolução política das Américas. O drama de 59 milhões de analfabetos, inclusive os de idade escolar, da América latina e de outros tantos milhões de semi-alfabetizados, em suas escolas primárias de dois e três anos de estudos e de dois e três turnos por dia letivo, repercutia nos salões do edifício do Congresso Nacional de Lima, onde se realizou a reunião interamericana, como um trovejar, talvez ainda distante, mas já suficientemente audível, da consciência popular dos povos americanos. Dir-se-ia que, despertados afinal para as suas reivindicações fundamentais, eram os povos do Continente que convocavam aquêle conclave, para a fixação de medidas destinadas a assegurar-lhes o direito dos direitos: uma escola primária, eficiente e adequada, para todos. E por isto mesmo - a despeito das vozes, muito nossas conhecidas, dos que ainda julgam possível reduzir a educação popular, na América latina, à mistificação das escolas primárias de tempo parcial e de curtos períodos anuais - a assembléia decidiu, com a afirmação de princípios da "Declaração de Lima", por uma escola primária de seis anos de curso e dias letivos completos. No mesmo ano, em que os governos americanos, reunidos em assembléia, fizeram tal declaração histórica, o Estado de São Paulo, isto é, o estado-líder da federação brasileira, convoca o seu primeiro Congresso de Ensino Primário. Sabemos que um fato não está ligado a outro. Mas, a coincidência pode ser tida como significativa: a mesma obscura fôrça, que está movendo a consciência coletiva, parece haver atuado para a escolha do tema da reunião de Lima, como para a reunião, no ano passado, do Congresso de Professôres Primários, de Belo Horizonte, e para êste Congresso do Ensino Primário, de São Paulo, ora aqui reunido, em Ribeirão Prêto. Presumo que se trata de um sinal, um grande sinal, de amadurecimento da consciência pública do país. Por isso estou seguro de que não estamos aqui para discutir, como é tanto do nosso gôsto, a educação dos poucos, a educação dos privilegiados, mas a educação dos muitos, a educação de todos, a fim de que se abra para o nosso povo aquela igualdade inicial de oportunidades, condição mesma para a sua indispensável integração social. Não se pode ocultar ser algo tardio êsse movimento de emancipação educacional ou de emancipação pela educação. Desde a segunda metade do século dezenove, quando não antes, as nações desenvolvidas haviam cuidado da educação universal e gratuita. Cogitando de realizá-la, agora, em época que, na verdade, já se caracteriza por outras agudas reivindicações sociais, de mais nítido ou imediato caráter econômico, corremos o risco de não poder configurar com a necessária clareza os objetivos da emancipação educacional. É que, no caso, trata-se ainda de algo que já nos devia ter sido dado, que já há muito fôra dado a outros povos, de cujas atuais aspirações queremos partilhar. Estas novas aspirações, mais fortemente motivadas pelos imperativos da época, sobrepõem-se às aspirações educacionais e de certo modo as desfiguram, criando, pela falta de sincronismo, especiais dificuldades para o seu adequado planejamento. A relativa ausência de vigor de nossa atual concepção de escola pública e a aceitação semi-indiferente da escola particular foram e são, ao meu ver, um dos aspectos dessa desfiguração generalizada de que sofre a política educacional brasileira, em virtude do anacronismo do nosso movimento de educação popular. Como os povos desenvolvidos já não têm hoje (salvo mínimos pormenores) o problema da criação de um sistema, universal e gratuito, de escolas públicas, porque o criaram em período anterior, falta-nos, em nosso irremediável e crônico mimetismo social e político, a ressonância necessária para um movimento que, nos parecendo e sendo de fato anacrônico, exige de nós a disciplina difícil de nos representarmos em outra época, que não a atual do mundo, e de pautarmos os nossos planos, descontando a decalagem histórica com a necessária originalidade de conceitos e planos, para realizar, hoje, em condições peculiares outras, algo que o mundo realizou em muito mais feliz e propício instante histórico. Se nos dermos ao trabalho de voltar atrás e ouvir as vozes dos que ainda no curso do século dezenove, no mundo, e, entre nós, imediatamente antes e logo depois da república, definiram (mesmo então com atraso) os objetivos do movimento de emancipação educacional, ficaremos surpreendidos com a intensidade do tom de reivindicação social, que caracterizava o movimento. É que a escola era, na época, a maior e mais clara conquista social. E hoje, o anseio por outras conquistas, mais pretensiosas e atropeladas, a despeito de não poderem, em rigor, ser realizadas sem a escola básica, tomaram a frente e subalternizaram a reivindicação educativa primordial. Tomemos, com efeito, ao acaso, as expressões de um dêsses pioneiros continentais da educação popular - por um conjunto de circunstâncias, o primeiro: Horace Mann. O grande batalhador da educação pública e universal, nos Estados Unidos, que no continente só encontra paralelo contemporâneo em Sarmiento, na Argentina, considerava a "escola pública" - a escola comum para todos - a maior invenção humana de todos os tempos. E em seu relatório ao Conselho de Educação de Boston, assim falava, há cento e oito anos (1848): "Nada, por certo, salvo a educação universal, pode contrabalançar a tendência à dominação do capital e à servilidade do trabalho. Se uma classe possui tôda a riqueza e tôda a educação, enquanto o restante da sociedade é ignorante e pobre, pouco importa o nome que dermos à relação entre uns e outros: em verdade e de fato, os segundos serão os dependentes servis e subjugados dos primeiros. Mas, se a educação fôr difundida por igual, atrairá ela, com a mais forte de tôdas as fôrças, posses e bens, pois nunca aconteceu e nunca acontecerá que um corpo de homens inteligentes e práticos venha a se conservar permanentemente pobre ... "A educação, portanto, mais do que qualquer outro instrumento de origem humana, é a grande igualadora das condições entre os homens - a roda do leme da maquinaria social ... Dá a cada homem a independência e os meios de resistir ao egoísmo dos outros homens. Faz mais do que desarmar os pobres de sua hostilidade para com os ricos: impede-os de ser pobres." (*) Era com êste espírito que se pregava a escola pública em 1848. Já não era o iluminismo ou a "ilustração", filosóficos, do século dezoito, mas todo o utilitarismo de uma doutrina de igualdade social pela educação. Já não era o puro romantismo individualista, tão vivo ainda, aliás, por todo o século dezenove, a crer, ainda com Spencer, que o devido ao indivíduo era só a liberdade, no sentido negativo de não interferência - daí não ser essencial ou ser até ilícito dar-lhe o Estado educação. . . - mas a doutrina positiva de que a liberdade sem educação, isto é, sem o poder que o saber dá, era uma impostura e um lôgro... Obrigatória, gratuita e universal, a educação só poderia ser ministrada pelo Estado. Impossível deixá-la confiada a particulares, pois êstes sòmente podiam oferecê-la aos que tivessem posses (ou a "protegidos") e daí operar antes para perpetuar as desigualdades sociais, que para removê-las. A escola pública, comum a todos, não seria, assim, o instrumento de benevolência de uma classe dominante, tomada de generosidade ou de mêdo, mas um direito do povo, sobretudo das classes trabalhadoras, para que, na ordem capitalista, o trabalho (não se trata, com efeito, de nenhuma doutrina socialista, mas do melhor capitalismo) não se conservasse servil, submetido e degradado, mas, igual ao capital na consciência de suas reivindicações e dos seus direitos. A escola pública universal e gratuita não é doutrina especìficamente socialista, como não é socialista a doutrina dos sindicatos e do direito de organização dos trabalhadores, antes são êstes os pontos fundamentais por que se afirmou e possìvelmente ainda se afirma a viabilidade do capitalismo ou o remédio e o freio para os desvios que o tornariam intolerável. A sobrevivência do capitalismo, em grande parte do mundo, não se explica senão por êstes dois recursos ou instrumentos de defesa contra a desigualdade excessiva que o capitalismo provocaria e provoca, sempre que faltem ao povo escola pública e sindicato livre. Por que, então, faltou e falta ao Brasil a consciência precisa de que, antes de qualquer outra reivindicação, cabe-lhe reivindicar a escola pública, universal, gratuita e eficiente, e o sindicato, livre e autônomo? Porque, aparentemente, lhe parece bastar a simulação educacional de escolas de faz-de-conta e os sindicatos de cabresto, que lhe têm dado, como altíssimo favor de deuses a pobres mortais, governos de despotismo mais ou menos "esclarecido" ou ditaduras falhadas? Estou em que uma das razões é o anacronismo a que me referi. Reivindicações sociais, para que a escola iria preparar o povo, amadureceram e estão sendo quiçá atropeladamente satisfeitas, com ou sem fraude aparente, em face da aceleração do processo histórico, impedindo-nos de ver, com a necessária exatidão, quanto nos faltam ainda de reivindicações anteriores e condicionadoras, não satisfeitas no devido tempo e, por isto mesmo, mais difíceis ainda de apreciar e avaliar exata ou adequadamente. Além da dificuldade inerente ao caráter preparatório ou de "preliminar" condicionante, próprio das reivindicações educacionais, temos a dificuldade do anacronismo que elas ora arrastam consigo e estamos a focalizar, com a sobrecarga, ainda mais grave, de dificuldades específicas decorrentes da aceleração do processo histórico, geral, aceleração sempre mais propícia a reivindicações consumatórias e finalistas, do que a reivindicações preliminares e instrumentais, como são as de educação. Por todos êsses motivos forçoso é reconhecer que há uma certa perda de contôrno nas mais legítimas reivindicações educacionais, adquirindo o processo de nossa expansão escolar o caráter tumultuário de reivindicações sobretudo de vantagens e privilégios, o que me tem levado a considerá-lo mais como um movimento de dissolução do que de expansão. Foi, com efeito, essa desfiguração da natureza da reivindicação educacional que elevou a matrícula da escola primária, sem lhe dar prédios nem aparelhamento, que multiplicou os ginásios, sem lhes dar professôres, e que faz brotar do papel até escolas superiores e universidades, com mais facilidade do que brotam cogumelos nos recantos mais sombrios e úmidos das florestas... Não faltam, entretanto, os que estadeiam certo orgulho ferido ou afetam mesmo um sorriso superior, ao ouvirem aquêles dentre nós que se levantam para afirmar que uma tal expansão não é expansão, mas dissolução... Somos chamados de pessimistas, convocando-nos os nossos Pangloss a ver que o Brasil progride por todos os poros e que o congestionamento, a confusão, a redução dos horários e a falta de aproveitamento nas escolas são outras tantas demonstrações dêsse progresso. Mas, ao lado dêles, já são numerosas as vozes que se erguem, apreensivas e graves. A verdade é que já se faz difícil ocultar a descaracterização do nosso movimento educacional. Pode-se expandir, pelo simples aumento de participantes, um espetáculo, um ato recreativo, em rigor, algo de consumatório, mas, não se pode expandir, sòmente pelo aumento de participantes um processo, temporal e espacial, longo e complexo de preparo individual, como é o educativo. E o que vimos fazendo é, em grande parte, a expansão do corpo de participantes, com o congestionamento da matrícula, a redução de horários, a improvisação de escolas de tôda ordem, sem as condições mínimas necessárias de funcionamento. Tudo isto seria já gravíssimo. Mas, pior do que tudo, está a confusão gerada pela aparente expansão, tumultuária, levando o povo a crer que a educação não é um processo de cultivo de cada indivíduo, mas um privilégio, que se adquire pela participação em certa rotina formalista, concretizada no ritual aligeirado de nossas escolas. Está claro que tal conceito de escola não é explícito, mas decorre do que fazemos. Se podemos desdobrar, tresdobrar e até elevar a quatro os turnos das escolas primárias, se autorizamos ginásios e escolas superiores sem professôres nem aparelhamento, - é que a escola é uma formalidade, que até se pode dispensar, como se dispensam, na processualística judiciária, certas condições de pura forma. Não é difícil demonstrar que nem sempre assim procedemos, nem sempre assim pensamos. Em verdade, os nossos educadores do início do período republicano revelavam uma adequada consonância com os educadores de todo o mundo, no conceituar a educação e no caracterizar o movimento de educação popular, que então se iniciava no país, com o advento da república. Não posso fugir de citar aqui alguns paulistas, cujas palavras parecem de verdadeiros êmulos dos Mann, Sarmiento e Varela, que, mais felizes, lograram realizar em suas nações, na época própria, muito do que pregaram. Retiro as citações de discursos e relatórios feitos todos antes do início dêste século, ainda no fervor republicano da década última do século dezenove. Caetano de Campos, Cesário Mota, Gabriel Prestes (para só citar paulistas) aqui irão nos revelar como era viva e lúcida e quente a convicção democrática da função da escola, na república e em seus primórdios. "A democratização do poder restituiu ao povo uma tal soma de autonomia, que em todos os ramos de administração é hoje indispensável consultar e satisfazer suas necessidades. Já que a revolução entregou ao povo a direção de si mesmo, nada é mais urgente do que cultivar-lhe o espírito, dar-lhe a elevação moral de que êle precisa, formar-lhe o caráter, para que saiba querer. "Dantes pagava a nação os professôres dos príncipes sob o pretexto de que êstes careciam duma instrução fora do comum para saber dirigi-Ia. Hoje o príncipe é o povo, e urge que êle alcance o "self-government" - pois só pela convicção científica pode ser levado, desde que não há que zelar o interêsse de uma família privilegiada. "A instrução do povo é, portanto, sua maior necessidade. Para o Govêrno, educar o povo é um dever e um interêsse: dever, porque a gerência dos dinheiros públicos acarreta a obrigação de formar escolas; interêsse, porque só é independente quem tem o espírito culto, e a educação cria, avigora e mantém a posse da liberdade. ................................................................................................................. "É óbvio que ninguém tolherá aos cidadãos o direito de abrir escolas particulares. Estas não serão, porém, em número suficiente para a população, e nem acessíveis para a grande massa do proletariado. "Demais, com a exigência do ensino moderno, tais instituições, quando mesmo bem fornidas de um material escolar suficiente, pesarão sôbre a bôlsa do particular de modo tal que, sem remuneração, não poderão ter alunos. ................................................................................................................. "Bastaria apontar a história do Brasil monárquico para saber quão improgressiva mostrou-se até hoje a família brasileira. Entre a escola primária - irrisória e condenável como era, e já eu disse ao princípio - entre a "escola régia" e a Academia, nenhuma educação dava o Govêrno ao povo. Só os colégios particulares forneciam, aos que podiam pagar, um preparo literário, que visava a matrícula nos cursos superiores. "Não era por certo com a gramática ensinada desde a primeira idade, e o latim, decorado até à Academia, que o brasileiro poderia conhecer as leis da natureza, nem saber cultivar o solo, nem envolver-se nas indústrias e nas artes. ................................................................................................................. "Todos nós sabemos o que valiam tais estudos, em que a gramática, o latim, a filosofia... de Barbe, a retórica eram "magna pars". Homens que mal sabiam ler e escrever - em pequena percentagem - e doutores: eis a única coisa que se podia ser no Brasil." (*) E três anos depois, em discurso na inauguração da Escola Normal da Praça da República: "A República foi, pois, a síntese da última fase da nossa civilização. "Proclamada a nova forma de govêrno, fêz-se mister realizá-la em tôda sua integridade. A primeira coisa, entretanto, que desde logo feriu os olhos deslumbrados dos que se acharam de passe do novo regime, foi que, com êle, as necessidades da democracia se aumentaram. O que era delegação no antigo sistema, é ação direta no novo; as inculpações, que outrora se faziam ao govêrno, recaem agora sôbre o próprio povo; as aptidões requeridas nos seus homens, é êle quem as deve ter porque é êle quem tem de governar, é êle quem tem de dirigir os seus destinos. "À semelhança do capitão a quem se incumbiu a direção do navio desarvorado em alto-mar, o povo viu-se atônito no momento em que tomou o domínio de si mesmo. Reconheceu faltarem-lhe aparelhos para as manobras. Desde logo surgiu forçosa a convicção da necessidade de saber. "A idéia da instrução então impôs-se. "É que pràticamente ficou demonstrado o asserto, tão conhecido, do imortal americano: "A democracia sem a instrução será uma comédia, quando não chegue a ser tragédia". É que a República, sem a educação inteligente do povo, poderia dar-nos, em vez do govêrno democrático, o despotismo das massas, em vez de ordem, a anarquia, em vez da liberdade, a opressão." (**) E no mesmo ano de 1894 e na mesma inauguração, como se falasse em uníssono com Cesário Motta, exclamava Gabriel Prestes, diretor da Escola: "Que diferença entre essa inépcia dos governos monárquicos e a sincera solicitude pelo interêsse público "nos regimes livres! Enquanto no Brasil, em um período de relativa calma, a ação governamental só se manifesta em favor das classes superiores, em França, no meio mesmo da crise revolucionária, institui-se a primeira escola normal em que milhares de alunos, segundo o pensamento da Convenção, deviam preparar-se para levar a todos os cantos da República, os conhecimentos necessários ao cultivo da inteligência. "Nos Estados Unidos, com um ardor ainda não igualado, todos os espíritos ilustres fazem consistir na difusão do ensino o programa de todos os governos, e foi assim que os Washington, os Madison, os Monroe, os Horacios Mann conseguiram lançar os fundamentos da enormíssima prosperidade americana." (*) * * * E já, em 1911, assim falava Bueno dos Reis Júnior, diretor de instrução: "Na época da proclamação da República, bem frisante era o caráter defeituoso e contraproducente do ensino público primário em nosso Estado, pelo que uma das primeiras preocupações dos próceres do govêrno foi promover o aperfeiçoamento dessa instituição. "Espíritos patrióticos e clarividentes, bem como animados dos mais vivos desejos de progresso, os dirigentes do povo, cônscios de que não podia haver aliança possível entre o desenvolvimento de um Estado e o obscurantismo de sua população, trataram, sem perda de tempo, de resolver o problema da instrução pública elementar, problema que se lhes afigurava um dos importantes, senão o mais importante dos seus deveres no momento. "Efetivamente era urgente dar ao ensino primário uma organização compatível com as necessidades reclamadas pela educação de um povo, para o qual acabava de raiar a aurora da democracia." (**) A coincidência de ideais com os grandes fundadores dos sistemas de educação pública - universal e gratuita - não podia ser mais completa, nem faltou jamais aos nossos educadores-líderes a consciência perfeita do que havia a fazer. E a escola primária e as escolas normais, que então se implantaram, tinham tôdas as características das escolas da época, sendo, nas condições brasileiras, escolas boas e eficientes. Registravam-se crises no ensino secundário e superior, mas o ensino primário e o normal podiam mais ou menos suportar honrosos paralelos com o que se fazia em outros países. Não bastava, porém, que as escolas não fôssem más. Era necessário que fôssem bastantes. E aí é que falhou inteiramente a pregação republicana, que, muito a propósito, acabamos de evocar quanto a São Paulo. Sem pretendermos ser exaustivos na perquirição de causas, limitamo-nos sem falseamento a dizer que nos faltou vigor para expandir a escola a seu tempo, quando os seus padrões eram bons ou razoáveis ainda, e o processo histórico não havia sofrido os impactos de aceleração dos dias atuais. Um persistente, visceral sentimento de sociedade dual, de governantes e governados, impedia que nos déssemos conta da urgência de expandir a educação do povo, parecendo-nos sempre que bastaria a educação das elites, já sendo suficientes (senão mais até do que suficientes) as poucas escolas que mantínhamos para o povo e pelas quais nem ao menos tínhamos o cuidado de aperfeiçoar como boas amostras ou modelos. A dificuldade do regime democrático, com efeito, é que êle só pode ser implantado espontâneamente em situações sociais simples e homogêneas. Tais eram as situações das comunidades relativamente pequenas da primeira metade ou dois terços primeiros do século dezenove. As minorias diretoras se constituíam, então, como que naturalmente, e podiam subsistir para, de certo modo, impor os seus padrões às maiorias ainda homogêneas, que lhes aceitavam a liderança. A simplicidade dessas comunidades, onde todos se conheciam, e a lentidão de seu progresso material ofereciam as condições necessárias para o esfôrço educativo global a ser conduzido pelas minorias condutoras. Tal situação se configura perfeitamente nos Estados Unidos, com a independência e a república. Aos líderes, figuras eminentes e, muitas, aristocráticas, coube a tarefa de orientar, por consentimento de todos, a jovem república. Quando o desenvolvimento econômico sobreveio, já a estrutura política estava suficientemente formada para suportar o impacto da desordem inevitável da aceleração do progresso material. Não direi que haja faltado à América um período de confusão e de perda de padrões, mas a nação sobreviveu a êle e pôde retomar a segurança de marcha do período anterior, mais simples e homogêneo. Não foi, porém, isto o que sucedeu conosco. Emergimos do período colonial, sem o sentimento de uma verdadeira luta pela independência, retardando de quase um século a república e embalando-nos com o reino unido, a herança de um príncipe e de uma monarquia, a que não faltaram sequer as ilusões de "império"... Além disto, não chegamos a ser democráticos senão por mimetismo e reflexos culturais de segunda mão. Na realidade, éramos autoritários, senão anacrônicamente feudais. A estrutura de nossa sociedade não era igualitária e individualista, mas escravista e dual, fundada, mesmo com relação à parte livre da sociedade, na teoria de senhores e dependentes. A república e, com ela, mais plausìvelmente, a democracia, portanto, teriam de abrir caminho, entre nós, mesmo com a "proclamação" de 15 de novembro de 1889, como um programa revolucionário. Ora, longe de estarmos preparados para isto e muito pelo contrário, dormitamos em todo o período monárquico, sem nenhuma consciência profunda de que, dia viria, em que o povo de tudo havia de participar, sem que para tal o tivéssemos preparado. A república veio acordar-nos da letargia. Iniciamos, então, uma pregação, que lembra a pregação da segunda metade do século dezenove nas nações então em processo de democratização e da qual nos deram uma amostra as citações que fizemos de educadores paulistas. Tal pregação não chegava, porém, a convencer sequer a elite, supostamente lúcida. Ela continuava a acreditar, visceralmente, que o dualismo de estrutura social, a dicotomia de senhores e súditos, de elite governante e povo dependente e submetido havia de subsistir e de permitir "a ordem e o progresso", mediante a educação apenas de uma minoria esclarecida. Na realidade, ninguém dava crédito aos educadores (nem sequer êles próprios), na sua pregação de educação para todos. Com efeito, os próprios educadores tinham sempre o cuidado de dizer que não era possível, econômicamente, a solução do problema educacional brasileiro ... Quando mudanças de estrutura social, da ordem da que nos deviam trazer a república e com ela a democracia, se processam efetivamente no seio de um povo, o problema econômico não pode constituir obstáculo à sua real efetivação. Em tal caso, é a estrutura social que se modifica, em virtude, exatamente, de modificação da estrutura econômica e política. Isto se daria, no Brasil, se a democracia e a república não fôssem um movimento de cúpula, com simples modificações na minoria governante, enriquecida ou empobrecida com a entrada de mais alguns elementos das classes relativamente pobres. Não obstante a república, conservamos a nossa estrutura dualista de classe governante e de povo. Seria realmente extravagância que as classes predominantes chegassem, em sua benevolência, ao ponto de se sacrificarem para educar o povo brasileiro... O apostolado dos educadores tinha, assim, algo de contraditório. Êles próprios admitiam que o sistema de escolas públicas para tôda a população era impossível, e isto mesmo afirmavam, retirando, "avant Ia lettre", qualquer eficácia política às suas ungidas palavras. Quando, na década de 20 a 30, começou a amadurecer mais a consciência política da nação e se iniciou a batalha pelo voto secreto e livre, esta batalha devia ser acompanhada (uma vez que não precedida) da sua óbvia contrapartida - a educação do povo. Não se dirá que lhe tenha faltado completamente êste eco, êste reclamo educacional. Foi, com efeito, nesse período que a idéia de estender a educação a todos começou a medrar. Mas, de que modo? Até então, os educadores, com a indiferença das classes governantes, vinham mantendo uma escola pública de cinco anos, seguida de um curso complementar. Quando os políticos, entretanto, resolveram tomar conhecimento do problema, forçados pela conjuntura social do Brasil, a primeira revelação de que não lhes era possível senti-lo em sua integridade, mas, apenas, sentir a necessidade de escamoteá-lo, patenteou-se na solução proposta: - reduzir as séries para atingir maior número de alunos. E foi exatamente aqui, em São Paulo, em 1920, que houve a tentativa da escola primária de dois anos (!) que, embora combatida e, felizmente, malograda, passou a ser padrão inspirador de outras simplificações da educação brasileira. Em 1929, considerando a tentativa de dar educação a todos altamente significativa e comêço de uma consciência democrática, que iria prosseguir nos esforços de não só dar a todos educação, mas de dá-Ia cada vez melhor e mais extensa, assim me referi ao movimento, então, ao meu ver, indicativo de um processo inicial de unificação do povo brasileiro: "Mas não teve, de logo, o serviço público de educação a presunção de poder assim se organizar, integralmente. O paulista, antes de tudo, não é um visionário. A sua imaginação, adestrada na realidade imediata de sua luta diária pela vida, não se entusiasma senão pelos ideais praticáveis e exeqüíveis. Se um dos traços mais definidos por onde se pode caracterizar a escola paulista é um traço de idealismo - o de seu vigoroso espírito democrático, - nem por isso deixou a sua organização de se prender estritamente aos limites da sua possibilidade de execução. "Êsse idealismo orgânico e construtor fêz com que aqui, primeiro que tudo, se buscasse dar a todos a oportunidade de freqüentar a escola. Fôsse preciso reduzir os cursos até o mínimo, não importava, contanto que se estendesse ao máximo o número de paulistas que por ela viessem "a ser favorecidos." (*) A realidade, porém, é que o movimento não tinha essa sinceridade revolucionária. A educação do povo não era problema estrutural da nova sociedade brasileira em processo de democratização, mas contingência que se tinha de remediar, de forma mais aparente do que real, e daí permanecer o nível aceitável como mínimo, na época, até hoje, antes agravado com os turnos e conseqüentes reduções de horário. A estrutura fundamental de uma sociedade dual de senhores e dependentes, favorecidos e desfavorecidos, continuava viva e dominante e a funcionar pacìficamente enquanto se pudesse conter o povo em suas reivindicações políticas de voto livre e secreto. O voto livre e secreto, a real franquia eleitoral é que viria destruir o dualismo e tornar a educação não apenas uma liberalidade, mas necessidade invencível da organização social brasileira. E a isto é que chegamos, depois de vinte e tantos anos de vicissitudes políticas de tôda ordem. Conquistou o povo brasileiro, afinal, a sua emancipação política. Pelo voto livre e secreto, constituem-se os poderes da república, os poderes dos Estados, os poderes dos municípios. Como chegamos a essa conquista, sem escolas adequadas para a educação do povo, nem escolas adequadas para a formação - não de uma classe governante - mas dos múltiplos quadros médios e superiores de uma democracia de hierarquia ocupacional e não pròpriamente social, estamos a sofrer as conseqüências melancòlicamente profetizadas por todos os teoristas da democracia. Que dizia, com efeito, Cesário Mota em 1894? "É que pràticamente ficou demonstrado o asserto, tão conhecido, do imortal americano: "A democracia sem a instrução será uma comédia, quando não chegue a ser tragédia". É que a República, sem a educação inteligente do povo, poderia dar-nos, em vez do govêrno democrático, o despotismo das massas, em vez de ordem, a anarquia, em vez da liberdade, a opressão." (**) E não é isso o que vemos? São por acaso poucos os sinais de anarquia, de confusão, de falta de segurança e de falta de proporção, os sinais, enfim, de não estarmos preparados para os poderes que adquirimos? A nossa própria estrutura administrativa de Estado, altamente centralizada, era perfeitamente lógica na sociedade dual que possuíamos. A União e os Estados representavam a parcela de poder confiada às "classes governantes", à minoria ou elite do país, cabendo-lhes a responsabilidade da vida nacional. Com a chegada da democracia e a consciência de emancipação política atingida, afinal, pelo povo brasileiro, temos de repensar todos os nossos problemas de organização e, entre êles, o de educação. Como fazê-Io, entretanto, em pleno tumulto econômico e político, assaltado por oportunidades de tôda ordem e com os quadros de direção ocupados por elementos de uma geração formada sob a influência de negações à democracia e, por isto mesmo, sem a consciência perfeita das necessidades da nova ordem em vias de se estabelecer e, ainda mais, sem nenhuma experiência dos esforços feitos por outros povos para a realização de conquista semelhante? A realidade é que, com a evolução política iniciada em 20, contra tôda expectativa, tivemos uma paradoxal exaltação da tese de formação de elites. Com efeito, até a década de 20, tínhamos uma estrutura educacional, de certo modo, aceitável. Nessa década, talvez sem o querer conscientemente, destruímos a escola primária com uma falsa teoria de alfabetização, reduzindo-lhe as séries. E na década seguinte, incentivamos uma educação secundária a partir dos onze anos, estritamente acadêmica e a ser ministrada, pelos particulares, mediante concessão do Estado. Destinada a quem? A todo o povo brasileiro? Por certo que não - pois a estrutura legal votada confiava à iniciativa particular a execução da reforma. Destinada, sim, a alargar a "classe governante". A reforma educacional de 31, no ensino secundário, longe de refletir qualquer ideal democrático, consolida o espírito de nossa organização dualista de privilegiados e desfavorecidos. A escola secundária seria uma escola particular, destinada a ampliar a "classe dos privilegiados". Nenhum dos seus promotores usa a linguagem nem reflete a doutrina dos educadores democráticos. A revolução de 30, nascida das inquietações políticas e democráticas de 20, fêz-se logo, como vemos, reacionária e representou nos seus primeiros quinze anos uma reação contra a democracia. Apagou-se no país tôda ideologia popular e mesmo o próprio senso da república, cabendo, por desgraça nossa, a geração formada nesse período conduzir a experiência da democracia renascente em 46. Essa geração nunca teve experiência sequer da doutrina democrática e estava inocente da necessidade de educação para o estabelecimento da difusão de poder, que gera, inevitàvelmente, a democracia. Se entramos na república ainda marcados pela experiência escravista, reiniciamos a república, marcados pela experiência totalitária. A experiência totalitária nada mais é do que o propósito de manter, pela violência, a estrutura dualista das sociedades antidemocráticas, antes mantida por consentimento tácito. Não deixou, assim, de ter a sua lógica a tentativa de conter a democracia no período de 37 a 45. A sociedade brasileira, pelas suas fôrças dominantes, estaria lutando pela permanência de moldes tradicionais ou como tais aceitos; nem de outra forma se poderia explicar o vigor do Estado Novo e a sua sobrevivência ainda hoje, em muito do que sucede no país. Se juntarmos ao vigor do tradicionalismo brasileiro assim renascido o despreparo da geração hoje dominante no país para a própria ideologia democrática, teremos as duas razões circunstanciais que tornam tão difícil, em nossa atual conjuntura, configurar de forma lúcida e convincente o problema da formação democrática do brasileiro. Às duas referidas circunstâncias veio ainda somar-se uma terceira e das mais importantes: a luta contra o comunismo, que se reabriu, logo após a segunda guerra mundial, durante a qual muitos chegaram a admitir certa atenuação, descontando-se a coexistência pacífica de dois mundos à parte... O caráter difuso da luta reaberta e quiçá exacerbada concorre para que dela se aproveitem certas fôrças reacionárias do capitalismo e do obscurantismo e se crie um clima pouco propício à afirmação do sentido revolucionário da democracia. Dando a democracia como realizada, fàcilmente se pode fazer passar por comunismo todo e qualquer inconformismo em face da situação existente ou qualquer desejo de mudança ou aperfeiçoamento, operando o alimentado conflito como um freio contra o desenvolvimento dos mais singelos postulados democráticos. Se considerarmos, pois, repetimos, a nossa tradição autoritária e semifeudal, o movimento reacionário e fascista da década de 30, no qual veio a se formar a geração atual brasileira, e a posição retrátil e defensiva da democracia em virtude de sua luta contra o comunismo, após a segunda guerra mundial, teremos os motivos pelos quais se torna difícil a criação de uma vigorosa mentalidade democrática no Brasil. Devido à atitude defensiva da democracia, na fase atual do mundo, perdemos o sentido de sua filosofia política e, cautelosamente, obscurecemos as reivindicações populares que ela envolve. E, criada que seja essa atitude, abrimos o caminho para estreitas e egoísticas reivindicações pessoais. A educação chega a se tornar, assim, não um campo de esforços pela realização de um ideal, mas um campo de exploração de vantagens para professôres e alunos. Salários, redução de horários, facilitação dos estudos e da obtenção de diplomas; expansão dessa dissolução, para a criação de novas oportunidades de salários e novas facilidades de ensino - são êstes os problemas, os graves problemas educacionais da hora presente. Como fazer ressaltar, nesse clima, os autênticos e graves problemas da escola pública e da escola particular, da educação para o trabalho e da educação para o parasitismo, da educação "humanística" e da educação para a eficiência social, da educação para a descoberta e para a ciência e da educação para as letras, da educação para a produção e da educação para o consumo? Em ambiente assim confinado, em que tudo já foi feito e o mundo já se acha construído, tôda a questão será apenas a de ampliar oportunidades já existentes para maior grupo de gozadores das delícias de nossa civilização. Reacionarismo e conservadorismo parecem coisas inocentes, mas o seu preço é sempre algo de espantoso. * * * Aceleração do processo histórico sob o impacto do progresso material, ignorância generalizada em virtude das deficiências e perversões do processo educativo e clima de conservadorismo senão reacionarismo social estão, assim, a criar, no país, condições particularmente difíceis à nossa ordenada evolução educacional. A despeito de tudo isso ou, talvez, por isso mesmo, aqui estamos neste congresso, chamados exatamente para achar um caminho para as nossas dificuldades de educadores. O primeiro passo não pode deixar de ser analisar e definir a situação. E foi o que procuramos fazer, com as considerações que vimos desenvolvendo ante a vossa atenção generosa. Se vale alguma coisa a análise que fizemos, temos de descobrir, baseados nela, os meios de corrigir e reorientar a situação, no sentido de revigorar certas fôrças e superar ou contrabalançar outras. Não se pode negar o intenso dinamismo da situação presente do Brasil. Há um despertar geral das consciências individuais para novas oportunidades e há progresso material para atender, pelo menos em parte, a corrida a novos cargos e novas ocupações. Como ingerir nesse processo dinâmico de mudança o fator educação, de modo que êle ajude, estimule e aperfeiçoe tôda a transformação, dando-lhe quiçá novos ímpetos e melhor segurança de desenvolvimento indefinido? Temos, primeiro que tudo, de restabelecer o verdadeiro conceito de educação, retirando-lhe todo o aspecto formal, herdado de um conceito de escolas para o privilégio e, por isto mesmo, reguladas apenas pela lei e por tôda a sua parafernália formalística, e caracterizá-la, enfàticamente, como um processo de cultivo e amadurecimento individual, insuscetível de ser burlado, pois corresponde a um crescimento orgânico, humano, governado por normas científicas e técnicas, e não jurídicas, e a ser julgado sempre a posteriori e não pelo cumprimento formal de condições estabelecidas a priori. Restabelecida esta maneira de conceituá-la, a educação deixará de ser o campo de arbitrária regulamentação legal, que no Brasil vem fazendo dela um objeto de reivindicação imediata, por intermédio do miraculoso reconhecimento legal ou oficial. O fato de havermos confundido e identificado o processo educativo com um processo de formalismo legal levou a educação a ser julgada por normas equivalentes às da processualística judiciária, que é, essencialmente, um regime de prazos e de formas, fixados, de certo modo, por convenção. Ora, se o processo educativo é fixado por convenção, está claro que a lei pode mudar as convenções... E daí a poder decretar educação é um passo. E que outra coisa temos feito, desde os repetidos espetáculos maiores dos exames por decreto, senão dar e tornar a dar êste passo? Tôda a nossa educação, hoje, é uma educação por decreto, uma educação que, para valer, sòmente precisa de ser "legal", isto é, "oficial" ou "oficializada". É pela lei que a escola primária de três e quatro turnos é igual à escola primária completa, que o ginásio particular ou público, sem professôres nem condições para funcionar, é igual aos melhores ginásios do país, que a escola superior improvisada, sem prédios nem professôres, é igual a algumas grandes e sérias escolas superiores do país. A primeira modificação é, pois, esta: educação, como agricultura, como medicina, não é algo que se tem de regular por normas legais e que só delas dependa, mas processo especializado, profissional, extremamente variado, em velocidade e em perfeição, e que deve ser aferido por meio de outros processos especializados, sujeitos ao delicado arbítrio de profissionais e peritos e não a meras regras legais ou regulamentares, aplicáveis por funcionários. A legislação sôbre educação deverá ter as caraterísticas de uma legislação sôbre a agricultura, a indústria, o tratamento da saúde, etc., isto é, uma legislação que fixe condições para sua estimulação e difusão, e indique mesmo processos recomendáveis, mas não pretenda defini-los, pois a educação, como o cultivo da terra, as técnicas da indústria, os meios de cuidar da saúde não são assuntos de lei, mas da experiência e da ciência. Fixado que seja o critério de que a lei não faz, não cria a educação, desaparecerá a corrida junto aos poderes públicos para equiparar, reconhecer e oficializar a educação, a fim de que valha ela, independente de sua eficiência e dos seus resultados, e assim se extinguirá um dos meios de identificar a educação com a simples aquisição de vantagens e privilégios, mediante o cumprimento de formalidades. Quem, porém, julgará os resultados da educação? - Os próprios professôres, pelos processos reconhecidos, pela experiência e pela ciência, para se fazerem tais avaliações. Apenas, os seus julgamentos, ao medir e apreciar o processo de educação elaborado sob a sua direção, nunca poderão ter o valor de sentenças passadas em julgado em instância suprema. Para valer para terceiros, isto é, para outras escolas ou para agências empregadoras, sejam privadas ou públicas, não há como não permitir novo exame, por professôres outros que não os que ensinaram e educaram. Por outras palavras, o diploma escolar é uma presunção de preparo e não um atestado de preparo. Pode ser aceito ou não, nunca se negando à instituição que receba o aluno para a continuação dos estudos, ou que o deseje empregar, ou que o vá autorizar a exercer qualquer profissão, o direito a re-examinar o candidato e, à luz do que souber, confirmar-lhe ou negar-lhe a competência presumida. A transferência para a consciência profissional dos professôres ou educadores, do poder de orientar a formação escolar, dentro das autorizações amplas da lei, não se poderá fazer sem retirar aos diplomas escolares a falsa liquidez que, hoje, se lhe atribui. Dir-se-á que o Brasil não tem condições para gozar dessa liberdade, que os professôres não têm competência para decidir sôbre o que ensinar nem como ensinar, etc., etc. Ora, se assim fôr, pior é que o possam fazer com a sanção oficial. O que desejamos é dar-lhes liberdade para que o façam do melhor modo que seja possível e os julguemos depois pelos resultados. A lei estabelecerá os períodos de educação elementar, complementar, média ou secundária, e superior, definirá os grandes tipos e espécies de educação e facultará a sua organizarão, no âmbito oficial e na esfera particular. Na sua existência real, as escolas constituirão um universo, a ser julgado por processos de classificação profissional, semelhantes aos que servem ao julgamento - permitam que o repita - de hospitais e casas de saúde, de campos e granjas agrícolas, de fábricas e conjuntos industriais, etc., etc. Não basta, porém, a mudança de conceito da escola para o de instituição profissional e não apenas legal. É necessário, já agora, em vista da sua intenção de promover a democracia, que ela seja, no campo da educação comum, para todos, dominantemente pública. Não advogamos o monopólio da educação pelo Estado, mas julgamos que todos têm direito à educação pública, e sòmente os que o quiserem é que poderão procurar a educação privada. Numa sociedade como a nossa, tradicionalmente marcada de profundo espírito de classe e de privilégio, sòmente a escola pública será verdadeiramente democrática e sòmente ela poderá ter um programa de formação comum, sem os preconceitos contra certas formas de trabalho essenciais à democracia. Na escola pública, como sucede no exército, desaparecerão as diferenças de classe e todos os brasileiros se encontrarão, para uma formação comum, igualitária e unificadora, a despeito das separações que vão, depois, ocorrer. Exatamente porque a sociedade é de classes é que se faz ainda mais necessário que elas se encontrem, em algum lugar comum, onde os preconceitos e as diferenças não sejam levadas em conta e se crie a camaradagem e até a amizade entre os elementos de uma e outra. Independente da sua qualidade profissional e técnica, a escola pública tem, assim, mais esta função de aproximação social e destruição de preconceitos e prevenções. A escola pública não é invenção socialista nem comunista, mas um daqueles singelos e esquecidos postulados da sociedade capitalista e democrática do século dezenove. Já todos estamos vendo que escola pública não é escola cujo programa e currículo sejam decididos por lei, mas, simplesmente, escola mantida com recursos públicos. Por ser mantida com recursos públicos, não irá, porém, transformar-se em repartição pública e passar a ser gerida, como se fôsse uma qualquer dependência administrativa ou do poder estatal. Em qualquer das democracias de tipo anglo-saxônico, a diferença entre professor público e funcionário é perfeitamente marcada. Não sòmente têm estatutos diferentes, como têm estilos, maneiras e modos de ser diferentes. Se me fôsse permitida uma comparação, diria que entre o funcionário civil e o professor público haveria diferença equivalente à que existe entre aquêle e o militar. Bem sei que também nós admitimos certas diferenças, mas a tendência vem sendo a de uniformizar todos os servidores do Estado. E esta é uma das tendências a combater. Dentro do espírito de escola como instituição profissional, a escola, quando pública, faz-se uma instituição pública especial, gozando de autonomia diversa da de qualquer pura e simples repartição oficial, pois a dirigem e servem profissionais específicos, que são mais profissionais do que funcionários públicos. Daí defender eu a administração autônoma das escolas de nível médio e superior e a administração central das escolas de nível elementar. Sòmente às escolas elementares aconselharia a administração central, não, porém, de um centro remoto, mas, da sede do município, enquanto não podemos chegar à sede distrital. Faz-se confusão com o que venho chamando municipalização do ensino primário. Julgo, em nosso regime constitucional, a educação uma função dos Estados, sujeitos êstes tão-só à lei de bases e diretrizes da União - espécie de constituição para a educação em todo o país. A administração local, que propugno para as escolas elementares, e a autonomia das escolas médias não importam em nenhuma subordinação do ensino pròpriamente a qualquer soberania municipal, mas em um plano de cada Estado de confiar a administração das escolas a órgãos locais, subordinados êstes ao Estado pela formação do magistério, que a êle Estado competiria, privativamente, e pelo custeio das escolas, pois, a quota-aluno com que contribuiria o Estado seria, em quase todos os casos, superior à quota-aluno municipal, importando isto, sem dúvida, na possibilidade de contrôle que os Estados julgassem necessário. O Estado é que confiaria a órgãos locais, previstos na lei orgânica dos municípios ou numa lei orgânica de educação, a administração, - por motivos de expediente, pois o órgão local seria mais eficiente do que o órgão estadual, distante na gerência da escola; por motivos sociais, pois assim melhor se caracterizaria a natureza local da instituição e o seu enraizamento na cultura local; e ainda por motivos econômicos, pois isto permitiria a adaptação da escola aos níveis econômicos locais. A nova escola pública, de administração municipal, ou autônoma, não deixaria, assim, de ser estadual - pelo professor, formado e licenciado pelo Estado, embora nomeado pelo órgão local, pela assistência técnica e pelo livro didático e material de ensino, elaborados sem dúvida no âmbito do Estado em seu conjunto. E, permitam-me ainda dizer, não deixaria de ser federal - pela obediência à lei nacional de bases e diretrizes e, ainda, talvez, pelo auxílio financeiro e a assistência técnica que os órgãos federais lhe viessem a prestar. Julgo que a nossa maquinaria administrativa centralizada para a direção das escolas é um dos resíduos do período dualístico de nossa sociedade, sempre a julgar que sòmente certa elite seria capaz de governar e dirigir, elite esta que se entrincheiraria tanto nos quadros estaduais como nos federais. De qualquer modo, porém, o plano que propugno, em nenhum ou por nenhum dos seus aspectos, impede que as possíveis elites estaduais ou federais continuem a exercer a sua influência, praza aos céus que salutar! Com tais alterações, aparentemente simples, mas do mais largo alcance, desejaríamos, como acentuamos, fortalecer algumas tendências e corrigir outras da nossa expansão educacional. a) Fortaleceríamos o desejo de oportunidades educacionais, facultando a organização de escolas na medida das fôrças locais, a serem julgadas pelo seu mérito, mediante sistema de "classificação" a posteriori. b) Libertaríamos, assim, a escola das rígidas prisões legais que convidam à fraude, e estimularíamos as iniciativas honestas e sérias, estabelecendo uma ampla equivalência entre os diversos tipos de escola, baseada no número de anos de estudos e nos resultados obtidos ou eficiência demonstrada, mais no sentido de amadurecimento intelectual e social do que de identidade das informações adquiridas. c) Incentivaríamos o estudo da educação, nos seus múltiplos e diversos aspectos, já que não haveria modelos uniformes e rígidos a seguir e teriam todos liberdade e responsabilidade no que viessem a empreender e efetivamente realizar. d) Abandonariam diretores, professôres e alunos a corrida por vantagens pessoais de tôda ordem, pois o ensino deixaria de ser oportunidade para exercício de habilidades e simulações para se tornar um trabalho, interessante por certo, mas sujeito às leis severas do seu próprio sucesso. e) Ajustaríamos as escolas às condições locais, sendo de esperar que se transformassem em motivo de emulação e orgulho das comunidades a que servem e que, a seu turno, lhes dariam apoio estimulante. f) Pela descentralização e autonomia, daríamos meios eficazes para a administração mais eficiente das escolas e responsabilidade dignificante a diretores e professôres, que não estariam trabalhando em obediência a ordens distantes, mas sob a inspiração dos seus próprios estudos e competência profissional. g) A flexibilidade necessàriamente impressa ao processo educativo melhor o aparelharia para atender às diferenças individuais, inclusive quanto à marcha da aprendizagem dos alunos e à verificação dessa aprendizagem. h) Os órgãos estaduais e federais, libertos dos deveres de administração das escolas, poderiam entregar-se ao estudo dos sistemas escolares e dar às escolas melhor assistência técnica, atuando para a sua homogeneidade pela difusão dos melhores métodos e objetivos, cuja adoção promovessem por persuasão e consentimento, e não por imposição. Em suma, as medidas aqui sugeridas e outras, que possam ser propostas, se destinariam a aumentar e até fortalecer, mais ainda, se possível, o ímpeto atual da expansão escolar brasileira, impedindo-a, ademais, de se fazer um movimento de dissolução, com o retirar-lhe tôda e qualquer vantagem ilegítima ou antecipadamente garantida, submetendo todo o processo educativo ao teste final dos resultados. A lei de bases e diretrizes que o Congresso Nacional terá de votar fixaria as linhas gerais do sistema escolar brasileiro, contínuo e público, com uma escola primária de seis anos, uma escola média de sete ou cinco, conforme incorporasse, ou não, os dois anos complementares da escola primária de seis, o colégio universitário e o ensino superior. E, concomitantemente, se cuidaria de evitar que continuassem estanques ou sem oportunidades de equivalência e transferências as escolas de grau médio com caráter especializado, profissional, qualquer que fôsse. Com a administração local, ou autônoma, por instituição, quando médias ou superiores - as escolas do Brasil seriam um grande universo diversificado e em permanente experimentação, podendo sempre melhorar, vivificado pela liberdade e responsabilidade de cada pequeno sistema local ou de cada instituição, e a buscar, pela assistência técnica do Estado e da União, atingir gradualmente a unidade de objetivos e a equivalência de nível, sem perda das características locais, pela própria qualidade do ensino ministrado. Abusos e erros, por certo, continuariam a existir, mas sem o horror da assegurada sanção oficial e, por serem de responsabilidade pessoal e local, sempre limitados ou não generalizados e com a possibilidade de se corrigirem, senão espontâneamente, pelo menos graças ao jôgo de influências exercidas pela assistência técnica, sôbre os serviços locais de educação. Resta o mais difícil: os recursos financeiros. Criada a consciência da necessidade de educação, esclarecido o seu caráter de reivindicação social por excelência, acredito que não fôsse difícil estabelecer, com as percentagens previstas na Constituição, os fundos de educação municipais, estaduais e federal. Tais fundos, administrados autônomamente, iriam dar o mínimo de recursos, que o próprio êxito dos serviços educacionais faria crescer cada vez mais. (*) A sua distribuição inteligente iria, de qualquer modo, permitir o crescimento gradual dos sistemas escolares, transformados nos serviços maiores das comunidades, contando com o concurso de fôrças locais, fôrças estaduais e fôrças federais para o seu constante desenvolvimento. * * * Não desejo terminar a análise e o apêlo que esta palestra encerra ou significa, sem uma palavra mais direta sôbre a escola primária, embora estivesse ela, explícita ou implìcitamente, sempre presente no meu pensamento e em tôdas as palavras até aqui proferidas, pois ela é o fundamento, a base da educação de tôda a nação. Dela é que depende o destino ulterior de tôda a cultura de um povo moderno. Se de outras se pode prescindir e a algumas nem sempre se pode atingir, ninguém dela deve ser excluído, sob qualquer pretexto, sendo para todos imprescindível. Façamo-Ia já de todos e para todos. Em épocas passadas, a cultura de um país podia basear-se em suas universidades. As civilizações fundadas em elites cultas e povos ignorantes prescindiram da escola primária. As sociedades constituídas por privilegiados e multidões subjugadas também sempre prescindiram da cultura popular. As democracias, porém, sendo regimes de igualdade social e povos unificados, isto é, com igualdade de direitos individuais e sistema de governo de sufrágio universal, não podem prescindir de uma sólida educação comum, a ser dada na escola primária, de currículo completo e dia letivo integral, destinada a preparar o cidadão nacional e o trabalhador ainda não qualificado e, além disto, estabelecer a base igualitária de oportunidades, de onde irão partir todos, sem limitações hereditárias ou quaisquer outras, para os múltiplos e diversos tipos de educação semi-especializada e especializada, ulteriores à educação primária. Nos países econômicamente desenvolvidos, até a educação média, imediatamente posterior à primária, está se fazendo também comum e básica. E a tanto também nós tendemos e devemos mesmo aspirar. Por enquanto, porém, apenas podemos pensar na educação primária, como obrigatória, já estendida, contudo, aos seis anos, o mínimo para uma civilização que começa a industrializar-se. A educação comum, para todos, já não pode ficar circunscrita à alfabetização ou à transmissão mecânica das três técnicas básicas da vida civilizada - ler, escrever e contar. Já precisa formar, tão sòlidamente quanto possível, embora em nível elementar, nos seus alunos, hábitos de competência executiva, ou seja eficiência de ação; hábitos de sociabilidade, ou seja interêsse na companhia de outros, para o trabalho ou o recreio; hábitos de gôsto, ou seja de apreciação da excelência de certas realizações humanas (arte) ; hábitos de pensamento e reflexão (método intelectual) e sensibilidade de consciência para os direitos e reclamos seus e de outrem. (*) Vejam bem que não se insiste na quantidade de informação (instrução) que a escola primária vá dar ao seu aluno; mas, por outro lado, o que se lhe pede é muito mais do que isto. Daí, o corolário imperioso: sendo a escola primária a escola por excelência formadora, sobretudo porque não estamos em condições de oferecer a tôda a população mais do que ela, está claro que, entre tôdas as escolas, a primária, pelo menos, não pode ser de tempo parcial. Sòmente escolas destinadas a fornecer informações ou certos limitados treinamentos mecânicos podem ainda admitir o serem de tempo parcial. A escola primária, visando, acima de tudo, a formação de hábitos de trabalho, de convivência social, de reflexão intelectual, de gôsto e de consciência não pode limitar as suas atividades a menos que o dia completo. Devem e precisam ser de tempo integral para os alunos e servidas por professôres de tempo integral. Êste congresso não se deveria encerrar sem uma solene declaração de princípios, em que o professorado paulista tomasse sôbre os ombros a responsabilidade de promover a recuperação da escola primária integral para São Paulo e dar o sinal para a mesma recuperação em todo o país, redefinindo-lhe os objetivos, os métodos e a duração, e traçando o plano para a sua efetivação. A escola primária de seis (6) anos, em dois ciclos, o elementar de 4 e o complementar de 2, com seis horas mínimas de dia escolar, 240 dias letivos por ano e professôres e alunos de tempo integral, isto é, proibidos de acumular com a função de ensino qualquer outra ocupação, que não fôsse estritamente correlativa com o seu mister de professor primário, êstes seriam os alvos a atingir, digamos, dentro de cinco anos. Um alvo suplementar, mas igualmente indispensável, seria o da formação do magistério, tornando-se obrigatório que, dentro dos cinco anos do plano, pelo menos um décimo (1/10) do professorado primário tivesse a sua formação completada com dois anos de estudos, em nível superior. Por outras palavras, a formação do magistério primário se faria, em duas etapas, a atual de nível médio, para o início da carreira, e dois anos complementares, de nível portanto superior, para a sua continuação em exercício, depois de cinco anos probatórios. Êsses dois anos de estudo se fariam ou em cursos regulares de férias, ou, pelo afastamento do exercício, dentro dos cinco anos iniciais, em cursos regulares. De sorte que, tão depressa quanto possível, pudesse o professorado contar, em cada nove professôres de formação média, com um de formação superior, que, como supervisor, os assistisse e guiasse, nos variados trabalhos escolares. Estas, as etapas mínimas a serem conquistadas no plano qüinqüenal para a educação primária, que aqui poderia ser apresentado, como o plano de Ribeirão Prêto ou plano de São Paulo. Não me direis que faltam recursos para tal plano, em um país cujos aumentos de salários orçam por dezenas de bilhões de cruzeiros. Faltará, talvez, prioridade para as despesas necessárias, e só isto. Não será, porém, uma tal prioridade a que deve ser, a que vai ficar definida no Congresso, para cujos componentes e à margem de cujas deliberações, estou tendo a honra de falar? A declaração que aqui se deverá fazer será uma declaração de consciência profissional, pela qual o magistério primário de São Paulo, desprendendo-se de reivindicações até agora excessivamente limitadas, afirmará à Nação e ao Estado, em tôda a sua amplitude, as condições educacionais em que poderá trabalhar, para conduzir a maior tarefa que um povo, uma nação, pode distribuir a um corpo de seus servidores: a da formação básica do brasileiro, para a sua grande aventura social de construção do Brasil. Não desmerecemos nenhum dos esforços para a educação ulterior à primária, mas reivindicamos a prioridade número um, à escola de que dependem tôdas as escolas - a escola primária.

Eliminação adiada: o ocaso das classes populares no interior da escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino

RESUMO Neste estudo faz-se uma crítica às formas de implementar políticas de avaliação baseadas em "responsabilização", em curso no MEC-INEP, bem como se propõe uma forma alternativa de lidar com o problema, baseada em "qualidade negociada" com envolvimento bilateral do Estado e da escola. Propõem-se elementos iniciais para uma política de Estado no campo da avaliação e localiza-se o processo de avaliação institucional da escola como o elo entre a avaliação externa de sistema e a escola e seus profissionais. Alerta-se para o fato de que as políticas de responsabilização unilaterais conduzirão à configuração de escolas para pobres e escolas para ricos, bem como se alerta para o risco de que os sistemas de avaliação externa centralizados na Federação ocultem, em indicadores estatísticos como o IDEB, as dificuldades que as classes populares estão tendo para aprender no interior da escola, legitimando estratégias que somente conduzem ao adiamento da exclusão destas – apesar do discurso da transparência e responsabilidade. Palavras-chave: Eliminação adiada. Avaliação institucional. Avaliação de sistema. Responsabilização. Qualidade negociada. A surpresa, em matéria de avaliação do ensino fundamental, neste momento, fica por conta do aprofundamento das políticas liberais da era FHC sob o governo de Luis Inácio Lula da Silva. Os que nele votamos esperávamos, já no primeiro mandato, uma mudança significativa de rota. Não ocorreu. Agora, assistimos à sua conversão plena às propostas liberais de "responsabilização" e de privatização do público.1 A Prova Brasil e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) (Fernandes, 2007b) são a ponta do iceberg desta mesma concepção. Ao passo que a política de avaliação do ensino superior, com a eliminação do Provão e a constituição do sinaes, parece caminhar no rumo certo, a política de avaliação do Ensino Fundamental envereda por caminhos duvidosos. Segundo Reynaldo Fernandes, atual presidente do INEP, considerado o mentor do IDEB: Antes do No Child Left Behind [lei aprovada em 2002, no governo Bush, que visa à melhoria da qualidade da educação por meio de um sistema de prestação de contas baseado em resultados], a maioria dos Estados já tinha sistema de avaliação. Nos que primeiro criaram um sistema, a evolução do desempenho dos alunos foi mais acentuada. Esses sistemas fazem com que as escolas e os dirigentes dos sistemas (secretários, prefeitos e governadores) se sintam responsáveis pelo desempenho. É a idéia da responsabilização, de accountability. (Fernandes, 2007a, grifos meus) Segundo Araújo, ex-presidente do INEP: Todo o PDE [Plano de Desenvolvimento da Educação] está ancorado justamente na criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Brasileira – IDEB, que pondera os resultados do SAEB, da Prova Brasil e dos indicadores de desempenho captados pelo censo escolar (evasão, aprovação e reprovação). Cria um indicador que varia de zero a dez, desdobrável por estado e por município e por redes de ensino [e agora por escola]. A partir da construção do IDEB, o MEC vinculará o repasse de recursos oriundos do FNDE à assinatura de compromisso dos gestores municipais com determinadas metas de melhoria dos seus indicadores ao longo de determinado período. (2007, p. 1; comentários entre colchetes meus) A estratégia de relacionamento com os municípios é gerencial, estabelecendo uma relação direta com governadores e prefeitos. Segundo Amaury Patrick Gremaud, diretor de Avaliação da Educação Básica do INEP: "O objetivo é usar o sistema de avaliação para prestar conta à sociedade, introduzir a transparência e comprometer as pessoas de um modo geral em busca da melhoria da qualidade de ensino" (Seminário realizado em Salvador, em julho de 2007; grifos meus).2Araújo (2007, p. 4) tem outra posição: Por isso concluo que o IDEB é mais um instrumento regulatório do que um definidor de critérios para uma melhor aplicação dos recursos da União visando alterar indicadores educacionais. O resultado de cada município e de cada estado será (e já está sendo) utilizado para ranquear as redes de ensino, para acirrar a competição e para pressionar, via opinião pública, o alcance de melhores resultados. Ou seja, a função do MEC assumida pelo governo Lula mantém a lógica perversa vigente durante doze anos de FHC. Já no final do ano de 2002, ainda sob o Governo FHC, o INEP financiava um convênio com o Núcleo de Estudos da População (nepo), da UNICAMP, para desenvolver Indicadores de Produtividade do Sistema Educacional que envolveu a realização de um seminário sobre um possível Indicador Municipal de Desenvolvimento Educacional (imde) para o ensino médio regular (Cunha et al., 2002). Boa parte dos problemas que estamos enfrentando com a educação básica nacional advém do próprio formato ideológico do projeto liberal hegemônico, agora "sob nova direção": ele reduz qualidade a acesso – supostamente como uma primeira etapa da universalização. Mas, antes de ser uma etapa em direção à qualidade plena da escola pública, é um limite ideológico, como bem aponta Alavarse (2007). Os liberais admitem a igualdade de acesso, mas como têm uma ideologia baseada na meritocracia, no empreendedorismo pessoal, não podem conviver com a igualdade de resultados sem competição. Falam de igualdade de oportunidades, não de resultados.3 Para eles, os resultados dependem de esforço pessoal, uma variável interveniente que se distribui de forma "naturalmente" desigual na população, e que deve ser uma retribuição ao acesso permitido. Eles não podem aceitar que uma espécie de "acumulação primitiva" (Marx) ou um ethos (Bourdieu) cultural sequer interfira com a obtenção dos resultados do aluno. Se aceitassem, teriam de admitir as desigualdades sociais que eles mesmos (os liberais) produzem na sociedade e que entram pela porta da escola. Isso faz com que a tão propalada eqüidade liberal fique, apesar dos discursos, limitada ao acesso ou ao combate dos índices de reprovação. Como a progressão continuada já demonstrou, ausência de reprovação não é sinônimo de aprendizagem e qualidade (Cf. Bertagna, 2003). Como analisamos em outro artigo (Freitas, 2002), esta postura tende a postergar os problemas políticos, econômicos e sociais que o liberalismo enfrenta com sua política econômico-social, mas não resolve o problema da universalização da qualidade da educação básica. Há hoje um grande contingente de alunos procedentes das camadas populares que vivem o seu ocaso no interior das escolas, desacreditados nas salas de aula ou relegados a programas de recuperação, aceleração,4 progressão continuada e/ou automática, educação de jovens e adultos, pseudo-escolas de tempo integral, cuja eliminação da escola foi suspensa ou adiada e aguardam sua eliminação definitiva na passagem entre ciclos ou conjunto de séries, quando então saem das estatísticas de reprovação, ou em algum momento de sua vida escolar onde a estatística seja mais confortável. A Prova Brasil e os usos previstos para ela (acesso à avaliação de cada escola via internet, por exemplo), como forma de responsabilização, poderiam fazer parte de qualquer programa liberal (do Partido Democrata brasileiro até o Partido Republicano de Bush, para não falar da dobradinha Thatcher/Blair). Trabalham dentro da perspectiva de que "responsabilizar a escola", expondo à sociedade seus resultados, irá melhorar a qualidade do ensino. A idéia completa dos republicanos de Bush (iniciada com Reagan) ou dos conservadores de Thatcher implica, no momento seguinte à divulgação dos resultados por escola, transformar o serviço público em mercado (ou mais precisamente em um quase-mercado), deslocando o dinheiro diretamente para os pais, os quais escolhem as melhores escolas a partir da divulgação desses resultados, de preferência estando as escolas sobre administração privada. É a política dos "vouchers", que dá o dinheiro aos pais e não à escola. Paralelamente, tende a criar um mercado educacional para atender ao fracasso escolar. No Brasil já se criou o mecanismo para iniciar a privatização: Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (oscips) que podem administrar escolas antes públicas. Para os liberais, a ação do mercado forçaria à elevação da qualidade de ensino. Todas estas ações encobrem o pano de fundo mencionado antes: nossa sociedade produz tamanha desigualdade social que as instituições que nela funcionam, se nenhuma ação contrária for adotada, acabam por traduzir tais desigualdades como princípio e meio de seu funcionamento (Bourdieu & Passeron, 1975; Baudelot & Establet, 1986).5 Todos concordamos em que isso não é desejável, mas meras políticas de eqüidade apenas tendem a ocultar o problema central: a desigualdade socioeconômica. Não é sem razão que os melhores desempenhos escolares estão nas camadas com melhor nível socioeconômico, brancas (Cf. Miranda, 2006, entre outros estudos disponíveis). Isso não significa que todas as escolas não tenham de ser eficazes em sua ação. Muito menos que as escolas que atendem à pobreza estejam desculpadas por não ensinarem, já que têm alunos com mais dificuldades para acompanhar os afazeres da escola. Ao contrário, delas se espera mais competência ainda. Mas os meios e as formas de se obter essa qualidade não serão efetivos entregando as escolas à lógica mercadológica. A questão é um pouco mais complexa. Deixada à lógica do mercado, o resultado esperado será a institucionalização de escola para ricos e escola para pobres (da mesma maneira que temos celulares para ricos e para pobres). As primeiras canalizarão os melhores desempenhos, as últimas ficarão com os piores desempenhos. As primeiras continuarão sendo as melhores, as últimas continuarão sendo as piores. Mas o sistema terá criado um corredor para atender as classes mais bem posicionadas socialmente, o que será, é claro, atribuído ao mérito pessoal dos alunos e aos profissionais da escola. O atual presidente do INEP não ignora estes problemas, antes os conhece. Diz ele: Quando se cria um sistema de avaliação e passa a haver responsabilização pelos resultados, os gestores vão se preocupar com as notas e as metas. Qual é a defesa desse sistema: se existe um mecanismo para atribuir responsabilidades, os gestores vão melhorar o ensino. Quais são as críticas? Eles podem tentar falsear as notas, excluir os alunos mais fracos. Nos Estados Unidos, isso aconteceu. Esses argumentos não têm como ser revidados. Mas não pode deixar de dar um "remédio" para a educação por causa dos efeitos colaterais que ele pode causar. Temos de ver se é melhor ou pior para a qualidade da educação. Acho que é melhor. Os efeitos colaterais devem ser combatidos. Quando a primeira-ministra Margareth Thatcher fez a reforma educacional, diziam que era uma visão de direita. Quando o Tony Blair se tornou primeiro-ministro, acreditavam que ele suspenderia a reforma. Mas ele a reforçou e combateu os "efeitos colaterais". Criou um programa de combate à exclusão dos piores estudantes, e as expulsões de alunos diminuíram absurdamente. (Fernandes, 2007a) Como se vê, a exclusão da pobreza é "efeito colateral" de "remédios" e Margareth Thatcher estava certa. Lá como cá, o governo progressista, que deveria ter revertido as políticas neoliberais, não o fez. Para o presidente do INEP, Tony Blair está certo em não reverter as políticas de Thatcher, portanto concluo que Lula também está certo em não reverter e aprofundar as políticas da era FHC. Agora, sobre o êxito das experiências do Governo Bush no âmbito da educação, há controvérsias. No The New York Times de 16 de abril de 2004 pode-se ler: A competição entre escolas públicas e privadas que o governo Bush está encorajando esquentou outro dia, na porta da sala 207, da Escola Elementar Wentworth, em Chicago. Durante vários meses, uma empresa privada financiada pelo governo federal enviou professores para darem aulas complementares a alguns alunos de Wentworth. Sem sucesso, o professor tentava controlar uma dezena de bagunceiros. A empresa enviou um supervisor para resolver a questão. Effie McHenry, diretora de Wentworth, balançava a cabeça com ar de desaprovação. "Simplesmente não acho que eles estão preparados para lidar com as crianças das zonas mais pobres", disse McHenry sobre os professores da empresa. "Acho que esperavam encontrar crianças sentadas, esperando explicações. Essas crianças não são assim. Elas precisam de instrução com desafios". O Chile, laboratório de idéias neoliberais, discute há anos como aumentar o valor do repasse às escolas que aceitam alunos pobres para motivar as escolas melhores a recebê-los, em face da desmotivação destas para com esses alunos.6 Pobres costumam derrubar as proficiências médias... O verdadeiro limite à universalização da melhoria da qualidade da escola é a própria ideologia meritocrática liberal. Caso a avaliação se coloque a serviço dela, então ficará limitada à medição do mérito e à ocultação da desigualdade social sob a forma de indicadores "neutros" como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) criado pelo MEC. Embora nível socioeconômico seja um nome elegante e dissimulador das situações de desigualdade social, ele é fundamental para se entender o impacto dessa desigualdade social na educação. Nem todas as camadas sociais sofrem da mesma forma com as agruras da realidade escolar do país – as camadas populares sofrem mais. Durante muito tempo duas vertentes se opuseram no cenário educacional: uma tentando explicar o fracasso escolar por fatores pedagógicos internos à escola, e outra tentando explicar o mesmo fracasso por fatores externos à escola, sociais. Como é comum acontecer nesses casos, nenhuma delas, isoladamente, dá conta do fenômeno. A dialética se impõe. As duas causas são pertinentes na explicação do fracasso. Se isso é verdadeiro, as políticas de eqüidade devem ser associadas às políticas de redução e eliminação das desigualdades sociais, fora da escola. Isso implica continuar a produzir a crítica do sistema social que cerca a escola, além de introduzir a importância do nível socioeconômico como variável relevante nas análises de avaliação do desempenho do aluno e da escola. É importante saber se a aprendizagem em uma escola de periferia é baixa ou alta. Mas fazer do resultado o ponto de partida para um processo de responsabilização da escola via prefeituras leva-nos a explicar a diferença baseados na ótica meritocrática liberal: mérito do diretor que é bem organizado; mérito das crianças que são esforçadas; mérito dos professores que são aplicados; mérito do prefeito que deve ser reeleito etc. Mas e as condições de vida dos alunos e professores? E as políticas governamentais inadequadas? E o que restou de um serviço público do qual as elites, para se elegerem, fizeram de cabide de emprego generalizado, enquanto puderam, sem regras para contratação ou demissão? O que dizer da permanente remoção de professores e especialistas a qualquer tempo, pulando de escola em escola? O que dizer dos professores horistas que se dividem entre várias escolas? O que dizer dos alunos que habitam as crescentes favelas sem condições mínimas de sobrevivência e muito menos para criar um ambiente propício ao estudo? Sem falar do número de alunos em sala de aula. Diante deste quadro, escolher apenas uma variável, desempenho do aluno, para analisar a educação básica brasileira, como o IDEB faz, é certamente temerário em face deste complexo de variáveis. Como alerta Araújo (2007), parece que o governo não aprendeu nada com o finado Provão. No próprio censo escolar que as escolas enviam ao MEC existem outras variáveis que poderiam ser levadas em conta e permitir uma modelagem melhor da realidade. Novas formas de exclusão Nossa preocupação vai mais além. Diz respeito ao aparecimento de novas formas de exclusão que estão sendo implementadas nos sistemas e sobre as quais temos pouco controle e conhecimento. Continuamos raciocinando em termos de reprovação, forma antiga de exclusão que coexiste, agora, com outras mais recentes desenvolvidas nos sistemas. Em 1991 (Freitas, 1991) propusemos o conceito de "eliminação adiada" para identificar uma das situações geradas no processo de exclusão das camadas populares do interior da escola: o conceito referia-se à permanência dos alunos dessas camadas na escola durante algum tempo, postergando sua eliminação da escola e realizando-a em outro momento mais oportuno. Bourdieu e Champagne (apud Bourdieu, 2001, p. 221) chamaram esta categoria de "exclusão branda": Seria necessário mostrar aqui, evitando encorajar a ilusão finalista (ou, em termos mais precisos, o "funcionalismo do pior"), como, no estado completamente diferente do sistema escolar que foi instaurado com a chegada de novas clientelas, a estrutura da distribuição diferencial dos benefícios escolares e dos benefícios sociais correlativos foi mantida, no essencial, mediante uma translação global de distâncias. Todavia, com uma diferença fundamental: o processo de eliminação foi diferido e estendido no tempo, e por conseguinte, como que diluído na duração, a instituição é habitada, permanentemente, por excluídos potenciais que introduzem nela as contradições e os conflitos associados a uma escolaridade cujo único objetivo é ela mesma. (Grifos meus) (...) eis aí um dos mecanismos que, acrescentando-se à lógica da transmissão do capital cultural, fazem com que as mais altas instituições escolares e, em particular, aquelas que conduzem às posições de poder econômico e político, continuem sendo exclusivas como foram no passado. E fazem com que o sistema de ensino, amplamente aberto a todos e, no entanto, estritamente reservado a alguns, consiga a façanha de reunir as aparências da "democratização" . (p. 223; grifos meus) Esta parece ser a base da construção das novas formas de exclusão nos anos de 1990, que agora atuam longitudinalmente, por dentro do sistema, sem necessidade de excluir fisicamente o aluno no início da escola básica, por reprovação. Os processos de avaliação informal vão construindo "trilhas de progressão diferenciadas" no interior das salas de aula e das escolas.7 Do ponto de vista do sistema, a exclusão foi internalizada a custos menores – tanto econômicos como políticos (cf. Freitas, 2002). As novas formas de exclusão atuam agora por dentro da escola fundamental. Adiam a eliminação do aluno e internalizam o processo de exclusão. Do ponto de vista da avaliação, essas novas formas de exclusão levam a uma redução da ênfase na avaliação formal e pontual do aluno em sala de aula (introduzem novas formas de organização escolar: progressão continuada, progressão automática, ciclos etc., e novas formas de avaliação informais), liberando o fluxo de alunos no interior da escola e conduzindo ao fortalecimento do monitoramento por avaliação externa, avaliação de sistema centralizada (Prova Brasil, SAEB, saresp, simave etc.). Nesses sistemas de avaliação o desempenho individual é subsumido nas estatísticas que lidam, preferencialmente, com tendências globais dos sistemas de ensino ao longo do tempo, a partir da proficiência média dos alunos. O mais grave é o fortalecimento da idéia de que seria possível, a partir de sistemas de larga escala centralizados em Brasília ou em uma capital, reorientar escolas específicas, a distância, por exposição dos resultados à sociedade e acordos com prefeitos. Pode-se imaginar a pressão autoritária, verticalizada, que os acordos assinados entre os prefeitos e o governo federal, para assumir metas do IDEB para seu município e obter verbas, vão gerar nas escolas e em seus profissionais. Não deveria ser este o papel da avaliação em larga escala ou de sistema, como veremos mais adiante, a qual deveria ser destinada, preferencialmente, à avaliação das próprias políticas públicas e não das escolas. Para o presidente do INEP: "O dia em que um prefeito perder a eleição porque foi mal na educação, não cumpriu as metas, aí estaremos no caminho correto. O aluno não pode ser punido" (Fernandes, 2007a). Muito antes disso, os prefeitos implantarão progressão continuada e liberarão o fluxo no sistema. Depois, contratarão sistemas privados de ensino (do tipo Objetivo, coc etc.) para enquadrar a metodologia usada pelos professores,8 quando não entregarão escolas inteiras às oscips, ampliando o mercado educacional. Finalmente, treinarão os alunos para as provas do SAEB e da Prova Brasil – entre outras "ações criativas". Importante assinalar que a redução da ênfase na avaliação formal do aluno, em sala de aula, e seu deslocamento para processos informais de avaliação (Freitas, 2003), bem como a ênfase maior em processos mais gerais de avaliação de sistema, fazem com que a qualidade seja objeto de medidas de desempenho como eficiência do sistema de ensino e não como igualdade de resultados dos alunos matriculados nas escolas desse sistema. Verificam-se apenas as grandes tendências ao longo do tempo. Mesmo quando o IDEB é por escola, ele pode transformar-se em um mecanismo de ocultação do ocaso de grande quantidade de alunos procedentes das camadas populares que "habitam" a sala de aula, de forma aparentemente democrática, mas sem que signifique, de fato, acesso a conteúdos e habilidades. Monitora-se o desempenho global do sistema (ou da escola), mas não se todos estão aprendendo realmente. Aqui, não há meio-termo: há de se ensinar tudo "a todos e a cada um" (Betini, 2004, p. 251). Para o INEP, isso poderá ocorrer em 2095, quando todo o sistema estaria com o IDEB convergindo em 9.9.9 O que fazer então? Em primeiro lugar, abandonar a visão autoritária típica da época da ditadura brasileira, quando se acreditou que gestão verticalizada e treinamento de professor resolveriam o problema da escola brasileira. Nascia aí o tecnicismo (Saviani, 1982). Estamos agora diante de um "neotecnicismo" (Cf. Freitas, 1992), em que acordos de gestão com prefeitos (em cascata para dentro dos sistemas), responsabilização e treinamento do professor via CAPES e Universidade Aberta do Brasil são a estratégia. Uma nova forma de conceber a relação com as escolas: qualidade negociada Há de se reconhecer as falhas nas escolas, mas há de se reconhecer, igualmente, que há falhas nas políticas públicas, no sistema socioeconômico etc. Portanto, esta é uma situação que, à espera de soluções mais abrangentes e profundas, só pode ser resolvida por negociação e responsabilização bilateral: escola e sistema. Os governos não podem "posar" de grandes avaliadores, sem olhar para seus pés de barro, para suas políticas, como se não tivessem nada a ver com a realidade educacional do país de ontem e de hoje. A estratégia liberal é insuficiente porque responsabiliza apenas um dos pólos: a escola. E o faz com a intenção de desresponsabilizar o Estado de suas políticas, pela responsabilização da escola, o que prepara a privatização. Para a escola, todo o rigor; para o Estado, a relativização "do que é possível fazer". Em nossa opinião, uma melhor relação implica criar uma parceria entre escola e governo local (municípios), por meio de um processo que chamamos de qualidade negociada, via avaliação institucional. Qualidade negociada é um conceito que nos chega por intermédio de um estudo de Anna Bondioli (2004). Ele reforça uma certa tradição de se conceber a avaliação educacional no Brasil que tem ancoragem em autores como Lüdke (1984), Saul (1988), Dias Sobrinho (2002a; 2002b), entre outros. Para a autora, definir qualidade implica explicitar os descritores fundamentais da sua natureza, ou seja: seu caráter negociável, participativo, auto-reflexivo, contextual/plural, processual e transformador. A qualidade, em seu aspecto negociável, é vista da seguinte forma: A qualidade não é um dado de fato, não é um valor absoluto, não é adequação a um padrão ou a normas estabelecidas a priori e do alto. Qualidade é transação, isto é, debate entre indivíduos e grupos que têm um interesse em relação à rede educativa, que têm responsabilidade para com ela, com a qual estão envolvidos de algum modo e que trabalham para explicitar e definir, de modo consensual, valores, objetivos, prioridades, idéias sobre como é a rede (...) e sobre como deveria ou poderia ser. (Bondioli, 2004, p. 14) O passo inicial, portanto, é mudar nossa concepção de avaliação passando de uma visão de "responsabilização" para uma visão de participação e envolvimento local na vida da escola (Cf. Freitas et al., 2004). Os mecanismos para este processo ocorrer devem ser baseados no projeto político-pedagógico da escola (sintonizado com as políticas públicas de Estado e governo) e no processo de avaliação institucional, ao qual voltaremos mais adiante. Entretanto, este caminho exige políticas de Estado para o ensino e para a avaliação. Políticas de Estado para a avaliação Todos sabemos que políticas de governo são vulneráveis. A descontinuidade é uma realidade em todas as esferas de governo. É preciso que algumas condições facilitadoras estejam acima dos governos e, para isso, há de se dispor de leis que estabeleçam políticas de Estado. Daí que a articulação governo federal/governo municipal não seja suficiente. Acredito que alguns aspectos já podem ser listados como objeto de tais políticas: 1. Instituir a obrigatoriedade da avaliação de sistema (políticas públicas educacionais) no âmbito municipal, com periodicidade bienal, sob controle do Conselho Municipal de Educação. SAEB, Prova Brasil e os sistemas estaduais de avaliação são mecanismos de acompanhamento do âmbito federal ou estadual e devem ser voltados para o monitoramento das tendências globais desses sistemas. Sua função não é entender o que ocorre em uma escola específica. Entretanto, a avaliação de sistema no nível municipal tem a finalidade de permitir um acompanhamento do conjunto dos resultados das escolas da rede e, pela proximidade, ser mais um elemento a ser levado em conta no processo de avaliação institucional de cada escola. Técnicas não-paramétricas como Análise por Envoltória de Dados podem ser utilizadas para se definir uma fronteira de eficiência entre escolas, levando em conta a realidade particular de cada rede e o resultado de avaliações nacionais e/ou locais (Cf. Rodrigues, 2005). A proximidade e o tamanho permitiriam também estudos longitudinais de painel (em que os mesmos alunos são acompanhados ao longo do tempo), superiores aos longitudinais seccionais feitos pelo SAEB e pela Prova Brasil (ver, por exemplo, Poli, 2007).10 2. Instituir a obrigatoriedade de processos de avaliação do projeto político-pedagógico das escolas, com periodicidade anual, no âmbito dos municípios, sob controle das redes de ensino. Complementarmente, definir a obrigatoriedade de que esse processo seja democrático, na forma de avaliação institucional escolar participativa, por meio da qual os que constroem a vida da escola tenham voz. 3. Instituir a obrigatoriedade da avaliação do professor e dos demais profissionais da escola pelos municípios, fixando amplas oportunidades e mecanismos de melhoramento da atuação do profissional e fixando, igualmente, os termos de seu desligamento do serviço público, para aqueles casos em que tais oportunidades não venham a ser adequadamente aproveitadas com impacto em sua atuação na escola, observadas as condições de trabalho oferecidas pelo sistema municipal e pela escola e "negociadas" no processo de avaliação institucional com a comunidade escolar. 4. Definir um teto para gastos dos municípios com os processos de avaliação com o fim de evitar a mercantilização destes e a retirada de recursos necessários para outras áreas de ensino. 5. É importante, ainda, criar um programa de apoio aos municípios, com recursos, junto ao INEP, para alavancar, do ponto de vista técnico, o trabalho de implantação destas políticas junto com os municípios – tanto no campo da avaliação de sistemas como no campo da avaliação institucional. A idéia, portanto, é que, à municipalização do ensino, deve seguir-se a municipalização da avaliação. Em vez de tentar "adivinhar", de Brasília, por que uma escola em um determinado município não se sai bem (ou mandar especialistas visitá-las), propomos que isso seja feito por quem está mais próximo da escola, o município ou organismos regionalizados que englobem vários municípios. Ações como esta, complexas, não podem ser desenvolvidas por "canetadas", sendo recomendável a criação de um fórum envolvendo as entidades da área da educação (sindicais e acadêmicas) para que as propostas sejam moldadas a várias mãos. Em busca do elo perdido: avaliação institucional A qualidade negociada é implementada pela avaliação institucional da escola, a qual é um processo que deve envolver todos os seus atores com vistas a negociar patamares adequados de aprimoramento, a partir dos problemas concretos vivenciados por ela. Se a avaliação em larga escala é externa, a avaliação institucional é interna à escola e sob controle desta, ao passo que a avaliação da aprendizagem é assunto preferencialmente do professor em sua sala de aula. A avaliação institucional deve levar à apropriação da escola pelos seus atores no sentido de que estes têm um projeto e um compromisso social, em especial entre as classes populares, e, portanto, necessitam, além deste seu compromisso, do compromisso do Estado em relação à educação. O apropriar-se dos problemas da escola inclui um apropriar-se para demandar do Estado as condições necessárias ao funcionamento da escola. Mas inclui, igualmente, o compromisso com os resultados dos alunos da escola. Foi a este processo bilateral que chamamos, antes, de "qualidade negociada". Com a avaliação institucional, o que se espera, portanto, é que o coletivo da escola localize seus problemas, suas contradições; reflita sobre eles e estruture situações de melhoria ou superação, demandando condições do poder público, mas, ao mesmo tempo, comprometendo-se com melhorias concretas na escola. Uma boa avaliação institucional terá conseqüências positivas para o ensino e a avaliação da aprendizagem em sala de aula, cuja prática é de responsabilidade do professor. Entretanto, por mais que seja uma responsabilidade e uma criação da professora, esta ação deve integrar-se ao projeto político-pedagógico da escola, elaborado pelo coletivo escolar – base também da avaliação institucional. A avaliação institucional deve, portanto, ser o ponto de encontro entre os dados provenientes tanto da avaliação dos alunos, feita pelo professor, como da avaliação externa dos alunos, feita pelo sistema. Num processo de auto-avaliação, a escola deverá levar em conta todas estas visões (cf. Sordi, 2002). A avaliação em larga escala de redes de ensino precisa ser articulada com a avaliação institucional e de sala de aula. Nossa opinião é que a avaliação de sistema é um instrumento importante para monitoramento das políticas públicas e seus resultados devem ser encaminhados, como subsídio, à escola para que, dentro de um processo de avaliação institucional, ela possa usar estes dados, validá-los e encontrar formas de melhoria. A avaliação institucional fará a mediação e dará, então, subsídios para a avaliação de sala de aula, conduzida pelo professor. Entretanto, sem criar este mecanismo de mediação, o simples envio ou a disponibilização de dados em um site ou relatório não encontrará um mecanismo seguro de reflexão sobre estes. Os dados podem até ter legitimidade técnica, mas lhes faltará legitimidade política. Vamos, novamente, esquecer de "combinar" com as professoras os acordos entre o MEC e os municípios, afastando-as do processo? Os três níveis de avaliação (sistema, escola e sala de aula) devem estar trabalhando articuladamente e segundo suas áreas de abrangência. Não se deve pedir à avaliação de sistema que faça o papel dos outros níveis de avaliação. Explicar o desempenho de uma escola implica ter alguma familiaridade e proximidade com o seu dia-a-dia, o que não é possível para os sistemas de avaliação em larga escala realizados pela Federação ou pelos estados, distantes da escola. A própria elaboração desses sistemas pode beneficiar-se da proximidade com a rede avaliada, envolvendo-a no planejamento da avaliação.11 Qualidade para quem? A pobreza perambula pelo interior das escolas. Segregada em trilhas e programas especiais, assiste a seu ocaso à medida que o tempo escolar passa. Sua passagem pela escola é tolerada. As professoras de 4ª série estão surpresas pelo fato de a pobreza ter chegado até elas sem saber as disciplinas escolares. Têm razão de estar surpresas. Antes, os mais pobres eram expulsos mais cedo da escola, portanto não chegavam à quarta série. Essa surpresa é, ao mesmo tempo, um elemento de denúncia da precariedade com que eles percorrem o sistema educacional. Pusemos a pobreza na escola e não sabemos como ensiná-la. Nenhum processo de avaliação externo resolverá isso. A solução equivocada tem sido liberar o fluxo e deixar de reprovar para esconder o fracasso. Não que a reprovação tivesse sentido, mas pelo que foi substituída? Somos contra a reprovação, mas não podemos fazer disso o foco da atuação das políticas públicas, inclusive porque nem toda reprovação se dá por causas pedagógicas. Combater a reprovação é apenas uma parte da solução. A questão de fundo é ensinar a todos e a cada um. A redução dos índices de reprovação é necessária, mas não é suficiente. Mais ainda, dada a composição do IDEB,12 ele poderá estimular no curto prazo a liberação do fluxo para reduzir a reprovação, regularizando o tempo de permanência do aluno na escola e aumentando o valor do IDEB,13 sem que isso necessariamente signifique aumento do desempenho do aluno. A mera passagem do tempo não ensina ninguém, a menos que seja feito algo nesta direção – mas isso, tenhamos presente, custa. Educação (de qualidade) para todos e cada um é cara. Contraditoriamente, o IDEB pode aprofundar o ocaso da pobreza e ser conivente com uma menor qualificação das camadas populares que, apesar de transitarem pelo sistema (a cobertura está acima de 97%), não aprendem nem são cobradas pelo desempenho, à espera da eliminação adiada nos finais de ciclo ou na passagem da 4ª para a 5ª série. Se após esta fase inicial do IDEB haverá ou não um aumento do desempenho do aluno, isso permanece no campo dos desejos e do futuro, o qual "a Deus pertence". Outras possibilidades estão presentes. As escolas vão querer a pobreza dentro dela, com o risco de ver seu IDEB piorar? A "responsabilização" gerará escolas que concentrarão exclusivamente pobres, onde o IDEB não importa, pois "já se sabe que não dá para esperar muito desses alunos"? No caso da rede, se um subconjunto de escolas elevar o índice, e este atingir a pontuação combinada entre prefeito e governo federal, já é suficiente; as demais continuarão onde estão – provavelmente estas serão as que atenderão à pobreza, que é guardada na escola para não incomodar, mesmo que não aprenda. No caso da escola não será diferente, muda apenas a unidade de análise. Mais ainda, o que fazer com escolas em que a evasão e a repetência não se dão por causas pedagógicas? No estado atual, as avaliações de sistema podem terminar ocultando esta realidade. A pobreza só se torna alvo de reflexão quando as médias de desempenho começam a cair. Caso a inclinação das curvas de desempenho seja positiva, em média, o sistema se salva. Mas a pobreza continua "excluída por dentro" e, de certa forma, a exclusão é legitimada pela positividade geral das curvas estatísticas. O que propomos é um modelo alternativo baseado na mobilização da comunidade local da escola, com a finalidade dupla de comprometer-se com resultados e, ao mesmo tempo, demandar do poder público condições para tal. Uma proposta como esta só pode ser implementada como política de Estado. Governos temem demandas. O fato é que, para ensinar a pobreza, teríamos de gastar muito mais com educação, pois ela exige estratégias pedagógicas mais caras, já que mais personalizadas. Não poderíamos ter o número de alunos elevado em sala de aula, o que demandaria mais escolas. Não poderíamos tratar diferenciadamente a pobreza, do ponto de vista metodológico, deixando-a em trilhas secundárias que a remetem ao nada. Tudo isso custa. Seria melhor assistir a sua passagem pelo sistema e, por que não, de certa forma facilitá-la? Os riscos de ocultação da má qualidade Em resumo, não somos contra a existência de avaliação externa. Não somos contra, igualmente, a existência de índices. Mas somos contra o uso da avaliação externa tendo como pano de fundo a "teoria da responsabilização" liberal. A responsabilização pressupõe uma linha direta de pressão sobre os municípios, o que poderá levar a toda sorte de armadilhas para se obter recursos. Prova Brasil, SAEB e IDEB devem ser instrumentos de monitoramento de tendências e não instrumentos de pressão. O primeiro risco de ocultação da má qualidade vigente é no campo dos conceitos. Chama a atenção que o MEC tenha optado pelo IDEB como referência de qualidade. Por que não constituímos uma medição baseada no custo aluno/qualidade, na qual se levaria em conta uma série de variáveis que são necessárias ao funcionamento adequado de uma escola de qualidade? Por que não definimos o que entendemos por uma escola que tenha condições de ensinar e não criamos um indicador mais amplo e sensível às desigualdades sociais?14 Há de se considerar ainda que somente língua portuguesa e matemática são medidas nos testes. Mas a escola é mais que isso. Há uma discussão a ser feita, ainda: Que tipo de escolarização está sendo oferecido às crianças? O que estão medindo os testes nas avaliações nacionais? Em segundo lugar, há risco de ocultação da má qualidade ao se lidar com a proporção de aprovados na fórmula do IDEB. Como já dissemos, aumento de aprovados não é o mesmo que aumento da aprendizagem.15 Em terceiro lugar, há o risco da ocultação da má qualidade pelo uso da média como referência.16 O IDEB não deixa de ser baseado em uma proficiência média da escola ou da rede. O uso da média como referência e sua variação ao longo do tempo não significam que houve melhoria para todos. Se um grupo de bons alunos for melhor ainda, a média subirá, mesmo que os piores continuem onde sempre estiveram. Ainda sobre esta questão, ouçamos a experiência internacional sintetizada por S. W. Raundenbush (2004, p. 36): "A legislação [No Child Left Behind] requer decisões pesadamente baseadas em medidas de proficiência média da escola (...). Elas são enviesadas de maneira particular contra escolas que atendem grande número de crianças pobres". Em quarto lugar, há a ocultação da má qualidade pelas metas distantes. Fixar 2021 como referência retira de foco a melhoria mais imediata do ensino para todos. Fala-se em nota 6 no IDEB para 2021. É muito tempo para pouca nota. Necessitamos de ações mais imediatas de universalização da qualidade. Essa data pode sinalizar que, até lá, não devemos cobrar o governo federal por melhorias além das previstas para cada ano. Firmado o convênio, o problema não é mais com o governo federal – é dos prefeitos ou governadores. Espera-se mais. Espera-se do governo federal uma política de Estado para o ensino fundamental e para sua avaliação. Nesta ordem: primeiro a política educacional, depois a política de avaliação. A melhoria do ensino, de fato, não vai ocorrer por cobrança a distância, mas por políticas de Estado que levem a ações locais nos municípios – entre elas à avaliação institucional das escolas pelo envolvimento de seus atores. Leithwood e Earl (2000), estudando os efeitos da responsabilização educacional, chamam a atenção para algumas variáveis que afetam este processo, entre elas "o poder do contexto e da história local para explicar as diferenças na implementação e no impacto dos mecanismos de responsabilização gerais" (p. 16). Caso não constituamos um coletivo nas escolas que resolva apropriar-se dos problemas destas, no sentido bilateral de responsabilização (do Estado e da escola), e não estabeleçamos um elo entre as avaliações externas e o ensino e a avaliação que o professor conduz em sala de aula, passando pelo controle social local do coletivo da escola, na forma de avaliação institucional, sob o olhar atento do poder público, corremos o risco de ocultar a má qualidade das escolas, inclusive para continuar a eleger os prefeitos, governadores e, é claro, até presidentes.